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O carnaval é uma época festiva, na qual a alegoria toma, por alguns dias, o lugar da seriedade. Quem gosta de festejar o momento costuma se permitir a experiência de se fantasiar, bancar um personagem e até mesmo criar algo inusitado. A festividade também é conhecida pelas fantasias que fazem críticas sociais ou menção a algum meme. Se você andou frequentando os ensaios dos blocos, provavelmente já deve ter visto alguma Jenifer ("o nome dela é?"), ou um sem número de Super-Homens e Mulheres Maravilhas e até mesmo pessoas com máscaras de políticos.
Essa caracterização é saudável, divertida e gera conexão, uma vez que está relacionada ao nosso cotidiano. No entanto, nem todas as fantasias e adereços são de bom gosto. Uma exemplo disso são as máscaras com o rosto do ator Fábio Assunção. A brincadeira, ao que parece, tem o intuito de lembrar os memes que se popularizaram nos anos de 2017 e 2018, como o "Sextou" e "ativar o modo Fábio Assunção".
A piada gerou repercussão e alguns artistas se posicionaram criticando a atitude. Entre eles, Marcelo Serrado, Tata Werneck, Clarice Falcão, Mariana Rios, Kleber Toledo e Paulo Vilhena.
É importante dizer que essa não é a primeira vez que o ator passa por esse tipo de desconforto. No ano de 2018, o grupo "La Fúria" lançou uma música chamada Fábio Assunção, a qual conta com trechos como: "Hoje eu vou beber, hoje eu vou ficar loucão, hoje eu não quero voltar para a minha casa não, hoje eu vou virar o Fábio Assunção".
No início de 2019, ele veio a público para comentar o assunto e disse que havia entrado com uma ação judicial para obter os direitos autorais sobre a música. No entanto, o motivo da ação não era em benefício próprio: o dinheiro arrecadado com a música seria revertido para instituições de caridade voltadas aos cuidados de pacientes dependentes químicos.
Mesmo o ator tendo feito uma reflexão sobre o assunto dizendo o quanto era difícil lidar com a dependência química, parece que o desabafo não foi suficiente para sensibilizar alguns foliões.
Humor ou falta de bom senso?
Fazer piadas com o cotidiano é comum entre os brasileiros, independentemente de ser Carnaval. No entanto, existem situações delicadas em que o uso do humor mais evidencia falta de informação e ausência de empatia do que uma tentativa de fazer os outros rirem. E a situação vivida pelo ator Fábio Assunção é uma delas.
"Há uma lógica perversa no uso das máscaras com o rosto do ator, na qual há uma minimização do sofrimento causado pela dependência química. É uma ridicularização da pessoa em questão", explica a psicóloga clínica Malka Reyzla Scharff Shoel.
A dependência química é uma condição de saúde complexa que pode ser compreendida como um conjunto de fenômenos comportamentais, cognitivos e fisiológicos que se desenvolvem após o uso repetido de determinada substância. A doença pode estar relacionada a uma substância psicoativa específica (por exemplo, o fumo, o álcool ou a cocaína), a uma categoria de substâncias psicoativas (como as opiáceas) ou a um conjunto mais vasto de substâncias farmacologicamente diferentes.
A dependência química é um problema mundial que afeta tanto a vida do paciente quanto das pessoas do seu convívio. Para se ter uma ideia, de acordo com o Relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), cerca de 29 milhões de pessoas têm dependência química no mundo.
Os dados referentes ao contingente de dependentes químicos no Brasil ainda são escassos, mas segundo o Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD) realizado pelo INPAD, cerca de 5,7% da população brasileira é formada por dependentes químicos, representando mais de 8 milhões de pessoas.
Em relação somente ao consumo de álcool no Brasil, o Relatório Global sobre Álcool e Saúde de 2018 da Organização Mundial de Saúde (Global status report on alcohol and health 2018) mostra que o consumo abusivo de álcool, respectivamente entre homens e mulheres, esteve associado a 69,5% e 42,5% dos índices de cirrose hepática, a 36,7% e 23% dos acidentes de trânsito e a 8,7% e 2,2% dos índices de câncer.
Diante de uma realidade dolorosa, na qual milhões de pessoas enfrentam problemas com dependência química, usar uma máscara de Carnaval com o rosto de um ator que lida há anos com essa condição e que nunca conseguiu ter sua intimidade preservada, escancara não apenas a falta de informação sobre o assunto, mas também uma falta de reflexão sobre nossas ações.
Uma doença estigmatizada
Provavelmente quem usa as máscaras de Fábio Assunção não sai com intenção de ofender, mas é importante ter em mente que o paciente com dependência química é constantemente julgado no meio social. ?Apesar de ser uma doença crônica que deve ser reconhecida e tratada, muitas vezes é associada à falha de caráter, preguiça ou falta de força de vontade para cessar o uso da substância. Os problemas com o álcool ainda podem ser vistos como sendo de responsabilidade dos próprios indivíduos e, portanto, sob seu controle?, explica o psiquiatra Arthur Guerra, especialista em dependência química e presidente executivo do CISA ? Centro de Informações sobre Saúde e Álcool.
De acordo com ele, o desconhecimento, associado a esses rótulos, contribui para a estigmatização do problema e influencia negativamente a possibilidade e qualidade da prevenção e do tratamento para a dependência química. Isso porque o medo de ser visto como parte de um grupo estigmatizado e o sentimento de ser incapaz de melhorar, além de culpa e vergonha, podem reforçar ao indivíduo com dependência a crença equivocada de que não há razões para buscar tratamento.
O psiquiatra acredita que é preciso maior conscientização sobre o tema, não somente para melhorar a prevenção e a identificação de problemas relacionados ao uso de álcool, mas também promover a busca por ajuda.
Romantização da dependência química
Seja na música, cinema, literatura ou redes sociais é bem verdade que há uma glamourização do consumo de algumas substâncias, principalmente o álcool. Se o assunto se restringisse apenas à metáfora, seria uma coisa, porém é necessário dizer que existe uma ideia de que se embebedar é bom e se for em excesso, melhor ainda.
"No Brasil, a cerveja é constantemente atrelada ao prazer, dá a ideia de que o indivíduo vai ter uma experiência incrível. Segundo essa lógica, pode-se dizer que o álcool tem um potencial de fazer as pessoas sentirem que estão aproveitando mais a vida", explica a psicóloga Malka.
O prazer obtido com o consumo do álcool não é à toa. Malka conta que a bebida age diretamente no sistema dopaminérgico, resultando em uma sensação de bem-estar. Com o tempo, há uma adaptação celular, aumentando assim a tolerância e incentivando o maior consumo da substância.
Em paralelo à sensação prazerosa obtida com o álcool, também há uma dicotomia em torno do seu consumo. Por um lado, há uma certo glamour decadente em se embriagar - o que contribui para que excessos aconteçam -, mas ao mesmo tempo também há o julgamento social para quem perde o controle da situação. O resultado dessa experiência pode ser desde uma ressaca que se resolve com alimentação saudável, repouso e hidratação, até consequências mais graves, como um coma alcoólico e até mesmo uma dependência da substância.
O problema de ter a glamourização da embriaguez é que o indivíduo que se vê nessa situação não acha que precisa de ajuda. Afinal, existem diferentes esferas que mostram que essa condição é positiva. Além disso, a pessoa que bebe e perde o controle se sente intimidada em procurar ajuda, pois como já dissemos, não sabe como assumir que precisa de orientação por medo do estigma social que há em torno do álcool. Ou seja muita gente precisa de ajuda mas quem quer vestir essa máscara?
O ator Fábio Assunção não teve medo de falar sobre seu quadro com a dependência química e também não teve problema em pedir ajuda quando a situação saiu de controle. E, mesmo diante do sensacionalismo em torno do sua saúde, ele se propôs a usar a situação de forma construtiva e alertar para os riscos e consequências do problema.
Talvez, mais do que usar uma máscara com o rosto de um ator, cada um de nós poderia "ativar o modo Fábio Assunção" e ver que a dependência química é um problema que precisa de tratamento e assim olhar para dentro de si e não ter medo de procurar ajuda se sentir que as coisas estão fora de controle.
Como buscar ajuda
A partir do momento em que o consumo de álcool passa a influenciar negativamente a vida no âmbito pessoal, familiar ou profissional é o momento de procurar ajuda.
O psiquiatra Guerra alerta que é importante consultar um médico clínico geral ou psiquiatra para que o paciente seja avaliado, orientado e direcionado para o tratamento mais adequado.
Os principais tipos de abordagem para pacientes que se encaixam nos critérios de diagnósticos de dependência de álcool são:
- farmacologia
- psicologia
- grupos de ajuda mútua e comunidades terapêuticas
Além disso, há os centros de tratamentos gratuitos especializados em dependência química como os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPSad) e hospitais públicos conveniados ao Sistema Único de Saúde (SUS).