Nutricionista formado pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), com aprimoração em Transtornos Alimentares pelo...
iRedatora especialista em família e bem-estar, com colaboração para as editorias de beleza e alimentação.
A Organização Mundial da Saúde e a psicologia definem o vício como uma dependência física e psicoemocional, normalmente de drogas ou de bebidas alcoólicas, que leva a um consumo geralmente incontrolável.
No entanto, o uso coloquial da palavra "vício" tem expandido ainda mais a definição do termo, sendo utilizado até mesmo para ilustrar quando uma pessoa está "obcecada" por algo, desde uma série de TV até mesmo uma comida.
E quando o assunto são hábitos alimentares, na medida em que observamos diagnósticos cada vez mais precoces de diabetes junto ao aumento de níveis de obesidade, mais se debate sobre a relação de alguns alimentos - principalmente o açúcar - como causa de possíveis "vícios alimentares".
Conversamos com especialistas a fim de entender a relação do açúcar e seus efeitos no organismo. Assim, é possível saber se o consumo de determinados alimentos pode levar à dependência, bem como a diferença entre vício e compulsão.
Vício em comer existe?
Por mais popular que seja falar que estamos viciados em determinada comida, não há qualquer indício que comprove que alimentos possam ser viciantes.
De acordo com Amanda Menezes Gallo, psicóloga e membro da equipe multidisciplinar do Ambulim (Ambulatório de Bulimia e Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas), o que existem são alimentos com alta palatabilidade - especialmente aqueles ricos em açúcar e gorduras. Em algumas pessoas, eles podem ativar as mesmas regiões do cérebro onde algumas drogas ilícitas ou substâncias psicoativas agem.
"Não existe vício alimentar ou dependência em comida ou em doce. O que existe é a ativação no cérebro - em algumas pessoas - de regiões do circuito da recompensa, uma região ativada quando existe a sensação de prazer. E por existir essa sensação de prazer advinda da ingestão de determinados alimentos, acaba se criando essa referência com o vício", explica a psicóloga.
O termo "vício em comer" pode ainda se referir a um elemento de cunho mais comportamental. O que pode existir durante a ingestão de alimentos é a necessidade de fazer ou repetir um comportamento a fim de se obter prazer, seja comendo um doce ou qualquer outra comida.
Segundo Jônatas de Oliveira, nutricionista e também membro da equipe multidisciplinar do Ambulim, a vontade de comer, também chamada de desejo, pode ter diversas facetas, e muda conforme a intensidade do desejo aumenta.
"Um desejo específico pode ser programado e atendido. Já o desejo intenso envolve urgência, carrega sofrimento e afeto negativo, com elaboração de como seria comer algo gostoso (a pessoa vê, se imagina comendo)", esclarece Jônatas.
Todavia, levando em consideração o prazer em consumir determinadas comidas, mais os nossos hábitos alimentares contemporâneos e a problemática do açúcar que consumimos diariamente, isso nos leva à pergunta: a culpa é mesmo do açúcar?
O açúcar vicia?
Um dos principais motivos para o açúcar ser visto como um dos grandes vilões do cardápio é devido a sua relação com problemas como diabetes, doenças cardíacas e arteriais, obesidade, redução do funcionamento imunológico, envelhecimento, estresse e entre outros.
No entanto, é preciso entender, antes de tudo, que o açúcar nada mais é que um carboidrato simples e refinado e que ele, como qualquer outra comida, faz parte do cotidiano alimentar de diversas pessoas.
E assim como qualquer outro nutriente, o consumo excessivo de açúcar pode de fato ocasionar em consequências negativas no organismo. Mas será que podemos mesmo dizer que o açúcar vicia?
"A alta palatabilidade de alimentos com açúcar e gordura acaba ativando, em algumas pessoas, regiões responsáveis pelo prazer no nosso cérebro. Então é natural, da própria espécie humana, querer repetir aquilo que nos faz bem, aquilo que é gostoso e aquilo que nos traz sensações boas, e o açúcar para muitas pessoas acabam ocupando esse lugar", explica a psicóloga Amanda Gallo.
Porém, embora a necessidade de repetir algo que envolva prazer e compensação possa se assemelhar com comportamento dependente, o vício e a dependência envolvem desde prejuízos físicos a emocionais, psíquicos e comportamentais.
Em um estudo recentemente publicado intitulado "O corpo pede e a mente julga: Os desejos intensos por comida nos Transtornos Alimentares (Oliveira & Cordás, 2020)", é discutida exatamente a relação entre a proibição e o desejo alimentar.
"A sensação de sofrimento, consciência da falta e o sentimento negativo fazem a pessoa pensar que é dependente do alvo desejado. Acontece que comida não causa dependência, portanto trata-se de um sofrimento e um mecanismo psicológico que as pessoas chamam de vício, mas não é", diz um trecho da publicação.
A "demonização da comida" e a compulsão alimentar
A compulsão alimentar é uma doença que entra na classificação de transtornos mentais com característica multifatorial, ou seja, não apresenta uma única causa.
Segundo Jônatas de Oliveira, não existe um alimento específico que causa compulsão ou que deve estar presente em um episódio de compulsão alimentar.
Por isso os profissionais da área afirmam que é de um extremo equívoco associar diretamente a compulsão alimentar com o açúcar ou qualquer outra comida.
"Se uma pessoa se propõe a proibir alguns alimentos, ela irá visar aqueles que gosta e aqueles que fazem parte da rotina alimentar, ou seja, quando os pensamentos obsessivos e desejos começaram a surgir, o cérebro entrará em contato com aquilo que é familiar, da rotina e que foi consumido há pouco tempo", diz o nutricionista.
Ainda de acordo com Jônatas de Oliveira, restringir qualquer elemento da alimentação de forma drástica e súbita irá ocasionar mecanismos psicológicos de proibição, autocontrole, estresse e desejo. "Costumamos desejar aquilo que não temos, e aquilo que é necessário também", alerta o nutricionista.
Para ele, as consequências da restrição total do açúcar são os exageros alimentares e até mesmo as compulsões em indivíduos mais vulneráveis.
Como criar uma relação equilibrada com açúcar?
Apesar de existir uma quantidade recomendada pela OMS (Organização Mundial da Saúde) para o consumo diário de açúcar, na prática do dia a dia ele pode se tornar mais presente que o indicado.
Jônatas de Oliveira explica que estabelecer uma regra exata de consumo é bastante difícil. O que uma dieta saudável requer são cuidados em selecionar alimentos mais nutritivos, sem ser restritivo consigo mesmo.
"As pessoas tentam controlar a fome e não honram esse sinal. É interessante que elas não tentam segurar a respiração por muito tempo, pois sabem que este processo acontecerá de qualquer forma. Obter energia para sobreviver também será um processo que o corpo vai priorizar, portanto colocá-lo em privação física (falta de energia) e emocional (sob regras rígidas e pensamentos de autocontrole) irá causar aumento de pensamentos sobre comida, desejos e urgência por comer", alerta o nutricionista.
Outro ponto importante é entender os perigos de demonizar qualquer tipo de alimento e o papel de cada um, não apenas na cadeia alimentar, mas também no nosso organismo.
Mais do que cortar e excluir um único alimento das refeições, é necessário - e crucial - variar os pratos e evitar o exagero de qualquer alimento.
Buscar por profissionais, tanto um nutricionista quanto um psicólogo, pode ser fundamental na procura de entender mais profundamente a sua relação individual com a comida e os impactos desta na sua vida.