Anna Hirsch Burg é psicóloga formada pela Pontifícia Universidade Católia de São Paulo. Fez sua formação em psicanálise...
i"Para toda mulher há sempre três mulheres: ela menina, sua mãe e a mãe desua mãe".
D.W.Winnicot, Conversações, Londres, 1987
"Será que minha filha me ama ou me odeia?" A pergunta parece absurda, mas tem certa coerência para as mulheres. Afinal, por mais exageradas que pareçam, questões dessa natureza são muito comuns tanto na clínica psicanalítica quanto fora dela. Sempre ouço, por exemplo, mães reclamando das filhas e vice-versa.
Muitas vezes uma não compreende a maneira de ser da outra, e se instala um processo de estranhamento mútuo. Questões assim, portanto, não são tão absurdas. Pelo contrário.
Situações assim têm uma origem, não surgem do nada. Imagine uma mãe esperando ansiosamente uma criança loira se surpreendendo ao ver sua filha nascer morena.
Ou ainda: uma mãe que nutre um desejo profundo de que a menina tenha os seus traços, mas ela vem ao mundo com a cara da sogra. Frustrações desse tipo, e outras até mais graves, podem acontecer o tempo todo nos relacionamentos entre mães e bebês.
Percebemos que quando as mães se sentem insatisfeitas com a criança, algumas marcas ficam registradas na psique da pequena, podendo até resultar em dificuldade de aceitação e distorções profundas de autoimagem. Como disse anteriormente, situações de mal-estar entre mãe e filha podem acontecer.
Mas, alto lá: nada disso é tão deliberado e consciente assim. Estamos falando de movimentos que se guiam fundamentalmente pela força do inconsciente.
Processos em que a filha não se dá bem com a mãe deflagram grandes sentimentos de culpa. O discurso das filhas é, geralmente, pontuado pela incapacidade que estas relatam de amar a própria mãe da forma com que pensam ser "o certo".
Sentem-se ingratas sem conseguir dar à própria mãe, uma mísera parte do carinho e da dedicação que receberam quando crianças. Repito que nada disso é deliberado. Os arroubos de raiva ou egoísmo das meninas são, de fato, vistos com olhos de reprovação pela sociedade. Isso porque segundo nossa cultura, toda mãe é santa.
No entanto, pode acontecer das filhas acharem a relação com a mãe muito decepcionante - baseada em excessos ou até em insuficiência de amor.
Muitas de nós, ora como filhas ora como mães, já intuímos de alguma forma que este conflito é muito profundo. Alguns momentos são pontuados por brigas diárias, discussões fervorosas e até gritos na presença de outras pessoas e familiares. Muitas vezes nenhuma das duas é capaz de dizer onde tudo começou.
A mãe a se perguntar se a filha a ama, e a filha se condenando por não conseguir amar a mãe "adequadamente". Amor e ódio se combinam muito neste processo: os dois sentimentos se completam, ora um está em alta, ora outro.
Quando me perguntam sobre o jogo inconsciente que se opera entre mãe e filha, costumo dizer que é o esquecimento, por parte de ambas, de que são mulheres. Pode parecer uma resposta simplista ou óbvia, mas a noção da própria condição feminina se perde no embate entre mães e filhas.
E não me refiro apenas ao esquecimento da consciência do feminino por parte da mãe, mas ao fato de que esta deve perceber e aceitar que a filha também possui uma subjetividade própria e autônoma.
Ou seja, para uma relação mais saudável, a mãe deve procurar entender que sua filha se tornou, ela também, uma mulher, e que não compartilham mais os mesmos desejos, opiniões e visões de mundo.
No imaginário de mães e filhas, uma deveria funcionar como espelho da outra. Quando, inconscientemente, esse espelho se quebra, cada uma das duas mulheres se torna autônoma. O que poderia ser visto como um processo de desenvolvimento da relação, muitas vezes acaba gerando ressentimento. Inconscientemente, é claro. Trata-se da difícil quebra de um espelho ao qual tanto se apegam: em alguns momentos mãe e filha alimentam a fantasia de que serão sempre iguais, aliadas e inseparáveis. Mas que bom que o espelho se quebra. Afinal, apesar de ser muito difícil se enxergar em um espelho quebrado,somente assim cada uma das duas pode se olhar de forma verdadeiramente autônoma.
Para a psicanálise, esse processo é extremamente rico. Sigmund Freud observou que cabe à criança satisfazer os sonhos que os pais não conseguiram realizar. É evidente que Freud estava se referindo aos desejos das pessoas de sua época, mas suas palavras servem muito à atualidade. Os pais sugerem (com ou sem palavras) aos filhos que se tornem grandes homens, super-heróis, enquanto as meninas ouvem que devem se casar com um príncipe que compense as escolhas (equivocadas) da mãe.
Não é fácil viver o luto dessa representação de uma criança maravilhosa que gostaríamos de ter sido para nossas mães e não fomos. E mesmo quando a filha se casa com o tal príncipe encantado que a mãe tanto desejou, não está liberta da relação: é chegada a hora dela ter um filho. Deve se tornar uma mãe. Uma boamãe, é claro. Em seu imaginário, a filha raramente se sente suficientemente boa para sua mãe, e quando o assunto é ser uma, os conflitos entre as duas se intensificam.
Relação dos meninos com as mães
Você deve estar se perguntando: "mas e os meninos com relação às mães?" Bem, processos assim também ocorrem com eles, mas de forma bem diferente. O fato é que esse tipo de conflito parece ser muito mais comum entre as meninas, com quem a mãe constrói uma relação por vezes mais abusiva.
Inconscientemente a regra é identificar-se com a mãe e não a abandonar jamais. O amor de uma mãe por sua filha se funde facilmente com o amor que ela tem por si mesma, portanto, estamos falando de contradições, sensações muito paradoxais. A mãe se ama a si mesma por meio de projetos narcísicos desenvolvidos em relação a sua filha e guarda sempre uma marca de sua relação com sua própria mãe.
Os pontos complexos dessa relação não nos dão soluções fáceis. Mas será possível um abrandamento dessa amarra tão umbilical? Acredito que uma relação equilibrada entre mãe e filha seja resultado de um caminho que deve ser percorrido com delicadeza e sensibilidade em todos os momentos da vida.
Por outro lado, ambas devem procurar se preparar para aceitar a perda da outra, ainda que simbolicamente. As duas devem caminhar para aceitar uma verdadeira separação, para a independência uma da outra.
Vale dizer, é claro, que como esse processo está longe de ser fácil, é sempre possível contar com uma terapia. A análise pode ajudar na elaboração da feminilidade tanto da mãe quanto da filha, e isso é extremamente libertador.
Por mais complexa e delicada que seja essa relação, sempre voltamos aos primeiros textos que escrevíamos com ajuda dos professores primários quando éramos crianças, aqueles em que só existia uma única verdade: "mamãe, eu te amo".
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