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"Toda forma de racismo é institucional", fala Wallace de Moraes, professor do Departamento de Ciência Política e História Comparada da UFRJ. Isso significa que as instituições que nasceram para perseguir escravos, mantendo os negros em subordinação, possuem até hoje vestígios desse DNA. O Estado Brasileiro é um descendente direto do Estado Moderno Europeu - o mesmo que sequestrou negros na África e os trouxe para o Brasil.
Dessa forma, considerando o fato de que a população negra, indigena e asiática não domina as instituições brasileiras, a ideia de racismo reverso é errônea.
"Dos povos que fundaram o Brasil, apenas os brancos se mantiveram no poder. Eles sempre puderam contar sua versão da história e, nesse ponto de vista, os povos indígenas e africanos são considerados sem valor por terem culturas diferentes de seus colonizadores. Essa versão, com uma visão única, fez com que o racismo se estruturasse em todos os aspectos da vida social brasileira", explica Maria Lúcia Silva, Coordenadora do Núcleo de Estudos Étnicos e Raciais da FMU.
O que é considerado racismo?
Segundo o dicionário Oxford Languages, racismo é:
- 1. conjunto de teorias e crenças que estabelecem uma hierarquia entre as raças, entre as etnias.
- 2. doutrina ou sistema político fundado sobre o direito de uma raça (considerada pura e superior) de dominar outras.
"Falando especificamente do Brasil e também comparando com o racismo e as práticas de racismo no mundo ao longo da história podemos considerar que os africanos e seus descendentes nos últimos 529 anos não ocuparam posição de poder e nem tiveram força e poderio bélico para dominar outras raças", explica Edna Ramos Soares, Coordenadora Regional da Associação Nacional da Advocacia Negra (ANAN).
Dessa forma, para entender como funciona o sistema racista e a razão pela qual a população branca não pode ser considerada vítima desse tipo de opressão, é preciso que haja a compreensão do contexto histórico mundial.
Edna explica que desde o século X o território africano passou a ser invadido e explorado. Com o decorrer da história, os escravizados africanos e seus descendentes passaram a ser desumanizados, tratados como peças e não como pessoas.
Em alguns países, como na Argentina, foram literalmente exterminados. Em outros, como EUA e Brasil, são sistematicamente eliminados ou encarcerados como forma de controle da população masculina. No Brasil, houve a tentativa de eugenia durante o Estado Novo, mas não foi bem sucedida. Desde o período imperial, leis penais e educacionais reforçaram as práticas segregacionais
"Nossa sociedade, por meio de ações estatais, manteve um sistema de racismo institucional e estrutural contra a população negra. Manteve grande parte na miséria, longe do acesso aos serviços de qualidade mais básicos, como educação, moradia, saneamento, transporte e saúde decentes, apenas para exemplificar. Sem falar das posições de poder e decisão", diz a especialista.
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Além disso, sempre houve desvalorização da cultura, da aparência e de tudo que é relacionado aos negros, considerados menores, inferiores e feios. Até mesmo práticas de sua cultura foram tipificadas como crime ou contravenção, como é o caso da capoeira, religiões de matriz africana e o samba.
Cota racial é racismo reverso?
Não. As cotas raciais foram criadas como uma forma de reparação histórica, ajudando aqueles que historicamente tiveram seus direitos reprimidos a entrarem em universidades e instituições.
"Não há como construir um ambiente social com igualdade e liberdade se há condutas e pensamentos ultrapassados. Após anos, falar-se de racismo reverso, uma formulação completamente distópica, não faz sentido. Precisamos construir um país justo, tratando os desiguais de forma desigual", diz Eloi Ferreira de Araújo, ex-ministro da Igualdade Racial e embaixador do Movimento AR, iniciativa da Universidade Zumbi dos Palmares.
É possível considerar que as cotas raciais são parte de um movimento antirracista, que exige direitos e melhores condições de vida e trabalho para a população vítima de opressão. Ao afirmar que essas práticas são uma espécie de racismo reverso, é feito um bloqueio na busca por reparos aos danos causados pela escravidão.
"Precisamos nos lembrar, por exemplo, que após a abolição da escravidão, não surgiu nenhuma política voltada à inserção do negro no mercado de trabalho, sendo sua mão-de-obra substituída pela do europeu, em uma política de branqueamento de nossa sociedade promovida por nossas elites", fala Fabio Fetz, coordenador do curso de História da Universidade Santo Amaro.
Fabio explica que, neste contexto de exclusão, os negros também não tiveram acesso à escolarização. "Assim, as políticas afirmativas foram criadas para promover a inserção de um grupo que historicamente foi alijado da universidade".
Malefícios da propagação do termo "racismo reverso"
"A formulação de racismo reverso é o ódio racial que veio à bala, estava escondido nas gavetas. Nesse momento complexo da sociedade, ele vem tentando se naturalizar", diz Eloi Ferreira de Araújo. Para ele, é preciso pontuar que, entre os malefícios da propagação desse conceito, estão a criação da antipatia e o "emburrecimento" das pessoas, não reconhecendo que o Brasil foi constuido com fundamento na escravidão e desigualdade.
Maria Lúcia Silva conta que, por muito tempo, a ideia da branquitude ficou sem questionamento científico e social, o que já não é mais uma realidade. Aos poucos, estamos conseguindo fermentar uma versão diferente para a história, sempre com o foco de que o racismo tem que ser combatido.
"Racismo reverso não existe e podemos afirmar que a confusão é de linguagem. O branco não entendeu que ele pode sofrer preconceito e discriminação por estar com o seu peso acima do padrão imposto pela sociedade, por exemplo, mas jamais sofrer algum tipo de perseguição por conta de sua cor de pele", explica.
Os brancos não perdem oportunidade de trabalho por conta da cor de pele ou tipo de cabelo, não são perseguidos por um segurança em lojas ou mercados, não são alvo de desconfiança a ponto de alguém segurar a bolsa para não ser roubado. "Não sendo o alvo do racismo, o branco não pode dizer que é praticado contra ele e, por isso, concluímos que não existe racismo reverso", diz a especialista.
Crime de racismo perante a lei
Ao defender a existência do racismo reverso, algumas pessoas brancas utilizam exemplos de situações em que foram ofendidas por suas características físicas, alegando também serem vítimas de preconceito. Para entender como essa situação é vista perante a lei, a advogada Edna Ramos Soares explica as diferenças entre injúria racial e o crime de racismo.
A Injúria Racial consiste em agressões verbais direcionadas a uma pessoa com a intenção de abalar o psicológico dessa determinada vítima, utilizando elementos referentes à raça, cor, etnia, religião, origem ou à condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. Ofensa por estas características configurariam injúria racial. "Podemos até supor que alguém possa ser ofendido por ser branco, mas na prática, que caso temos, para usar como exemplo? E se temos, é uma exceção diante de um mar de ofensas aos negros, indígenas, ciganos, estrangeiros", pontua Edna.
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Já o crime de racismo é uma prática ou o ato de impedir ou dificultar o acesso de um número indeterminado de pessoas a serviços, empregos ou lugares, como cargos da Administração Pública, empresas privadas, estabelecimento comercial, hotéis ou estabelecimentos congêneres, restaurantes, bares, estabelecimentos esportivos, casas de diversão, clubes, salões de cabeleireiros, barbearias, entradas, elevadores sociais e meios de transporte.
"No Brasil, não tivemos lei que segregassem brancos de negros como nos EUA ou vivemos um Apartheid como na África do Sul. Nossa segregação é exercida na prática. Como expressamos antes, nas leis imperiais, na primeira república e até mesmo durante o Estado Novo, por omissão ou expressamente, garantiram que nossa sociedade mantivesse sempre a população negra à margem da sociedade e dos direitos", explica a especialista.
Portanto, considerando todo o contexto histórico, é possível afirmar que o padrão de beleza que impera no mundo e em nossa sociedade é o padrão europeu - cabelos lisos, pele alva, nariz afilado, entre outras características.
"Você pode até dizer que uma criança chamou outra de branca azeda, mas nenhuma é desumanizada ao ponto de ser comparada a um símio, como é tão comum acontecer com pessoas negras. Ofensas a uma pessoa branca por suas características em ser branca não ocorrem. Podem ser ofensas de cunho pessoal, por questões de caráter e não por sua branquitude. Isto se caracterizaria como injúria racial, mas como alguém seria discriminado por ter características consideradas o padrão de beleza?", finaliza Edna.