
Redatora de saúde e bem-estar, autora de reportagens sobre alimentação, família e estilo de vida.

O fenômeno “reality shifting” (RS) começou na pandemia, depois que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a COVID-19 uma emergência de saúde pública internacional. Foi então que essa atividade mental, conhecida como mudança de realidade, tornou-se mais procurada (e praticada).
O conteúdo de mudança de realidade cresceu como um incêndio em plataformas on-line como Reddit, TikTok, YouTube e Wattpad.
O que é o “reality shifting” ou mudança de realidade?
O RS é descrito como “a experiência de ser capaz de transcender seus limites físicos e visitar universos alternativos, em sua maioria fictícios”, usando técnicas de meditação para facilitar essa viagem “quântica” e para escapar de alguma forma dos problemas reais.
Algo parecido com a filosofia ‘delulu’ sobre a qual falamos aqui, mas de uma forma muito mais imersiva, por assim dizer, porque eles afirmam que ocorre uma mudança de consciência. Uma das opções mais populares é se mudar para Hogwarts, dentro do Universo Harry Potter, para ser parceiro de Draco Malfoy, por exemplo, em uma realidade desejada.
A youtuber Kristin Dattoo, por exemplo, explicou ao The Washington Post que ela é capaz de fazer isso porque “qualquer realidade que você possa imaginar existe em algum lugar do universo, portanto, ao mudar a realidade, estamos apenas mudando nossa consciência para podermos viver nessas realidades”.
Em outras palavras, de acordo com essa teoria, se você quisesse ver como seria sua vida se tivesse feito escolhas diferentes ou se quisesse viver em um mundo como o de Harry Potter, bastaria mudar sua consciência para o universo paralelo certo, pois ela se baseia na teoria do multiverso. Sim, aquela explorada pelo Dr. Estranho no Universo Marvel.
Essa técnica de RS foi estudada e comprovadamente funciona? De forma alguma, mas isso não impede que haja mais de 1,4 milhão de postagens no TikTok com a hashtag #shiftingrealities e milhares de pessoas firmemente convencidas de seu poder.
Como praticar o “reality shifting”?
Todo mundo tem uma maneira de entrar no RS. Duas das mais populares são o “método do corvo”, que envolve deitar-se com os braços e as pernas abertos e contar de cem para trás enquanto imagina a realidade desejada, e o “método Alice no País das Maravilhas”, no qual o transferidor de consciência deve se visualizar correndo atrás de uma pessoa da realidade que deseja visitar e pulando em uma toca de coelho com ela.
Mas há muitos outros, como o método lift (semelhante ao método de Alice) ou o método Sunni, que combina técnicas de respiração profunda com o uso de afirmações. Para se ter uma ideia da magnitude do fenômeno, o vídeo do YouTube chamado “How to Shift Realities 101” acumula mais de dois milhões de visualizações.
A maioria faz isso entrando em um tipo de estado hipnagógico, um estado transitório entre a vigília e o sono que ocorre naturalmente ao adormecer. E não se trata do sonho lúcido cientificamente aceito, mas de algo chamado “experiência transliminar”, como explica a terapeuta Grace Warwick, que ocorre quando estamos acordados e “é mais comum quando a mente está em um estado calmo, por exemplo, ao acordar e antes de adormecer”.
Os perigos da prática
Para alguns shifters, essa técnica é uma ajuda para reduzir o estresse e a ansiedade. Para alguns, é puro entretenimento. Para outros, é uma ferramenta de exploração pessoal. Um estudo de 2021, um dos poucos existentes, aumentou a probabilidade de que esses “reality shifters” compartilhem certos traços exclusivos ou características psicológicas que lhes permitam se envolver nessa prática, como a dissociação.
Como o psicólogo Mark Travers explicou à Forbes, a dissociação é “um fenômeno psicológico caracterizado por uma desconexão entre pensamentos, identidade, consciência e memória”, e pode “ser perigosa” se for à custa de um envolvimento significativo com sua realidade real.
Antonio Dessì, psicólogo com orientação cognitivo-construtivista, diz que há “um risco em potencial para nosso bem-estar psicológico, especialmente entre os mais jovens”.
Embora possa ser uma válvula de escape para emoções perturbadoras, também pode “levar à dissociação e a problemas para distinguir a fantasia da realidade” ou até mesmo ao ponto de preferir a vida alternativa à real, causando isolamento social ou “agravando condições existentes, como ansiedade e depressão”, como diz Dessì.
Um último ponto: pode ser viciante. Como Travers explicou, isso pode fazer com que eles sintam “falta de autonomia pessoal mesmo na realidade que escolheram”. O especialista também ressalta que, embora “possa oferecer benefícios como expressão criativa, relaxamento e acesso a mundos interiores fascinantes, é essencial manter uma perspectiva equilibrada e permanecer fundamentado em sua realidade atual”.