Anna Hirsch Burg é psicóloga formada pela Pontifícia Universidade Católia de São Paulo. Fez sua formação em psicanálise...
iSerá que a imagem do gordinho simpático e engraçado que está presente em nosso imaginário estaria mudando? Pois essa questão me ocorreu outro dia após ouvir o relato bastante curioso de uma adolescente. A garota me perguntava: "se bullying nas escolas é coisa para ser resolvida com os pais, com a direção do colégio e especialistas, como se resolve o bullying dentro de casa?". A adolescente me contava que a mãe e os irmãos a faziam passar por um verdadeiro terrorismo, e tudo por causa do seu sobrepeso. "Ainda bem que tenho um namorado para levantar minha autoestima, ou eu nem olharia no espelho", desabafou.
Os questionamentos feitos por essa adolescente, que se sente motivo de vergonha para a família, são muito profundos. E assim como essa garota, outros adolescentes, mulheres e homens de todas as faixas etárias, todos aqueles que apresentam (ou apenas pensam ter) algum sobrepeso são vistos como pessoas com algum déficit. Na maioria dos casos, sofrem discriminação.
Em todo mundo, vemos pessoas em busca de alternativas imediatas para o excesso de peso. As motivações variam: algumas vezes é motivo de saúde, muitas vezes desejo de possuir um corpo perfeito. De fato, a obesidade não está apenas na cabeça das pessoas, mas ela está também no corpo, de fato - tanto que o problema já é a epidemia do século. Mas nunca se falou tão obsessivamente em fórmulas de emagrecimento, dietas milagrosas, ginásticas definitivas e cirurgias plásticas na história da humanidade. A pauta está presente nos consultórios, na rua, na mídia e nas reuniões familiares. O excesso de peso tem sido tratado como doença ao mesmo tempo em que a mídia exibe corpos esculturalmente magros. Muito magros, aliás. Reais ou não, essas imagens olímpicas instalam nas pessoas comuns - estejam elas ou não acima do peso - vários tipos de insegurança e depressão.
O exagero pode até ser moderno, mas a preocupação com o que se leva à boca não é um fenômeno moderno, muito pelo contrário. Os gregos falavam em dietética para englobar um conjunto de coisas: orientação alimentar e regras de firmeza moral para a "arte de viver". Para os egípcios, a dieta era uma forma de preservar a saúde. A comida em excesso, no entanto, passou a ser bem vista na Europa na passagem do século VIII para o XIX, quando a ascendência da burguesia tornou a gordura um símbolo de riqueza e distinção social em oposição ao povo comum, que vivia um regime de escassez alimentar. Naquele contexto, a gordura distinguia claramente ricos e pobres.
A partir da década de 60, no entanto, o aumento na oferta e no acesso aos alimentos em oposição aos longos períodos de escassez vividos pela humanidade aumentou o peso da população como um todo.
O papel da psicanálise na qualidade de vida do obeso
Mas, você deve estar se perguntando, o que a psicanálise tem a oferecer nesse contexto de tanta comilança? Bem, na maioria das vezes uma pessoa vai ao consultório após várias tentativas frustradas de dieta. No entanto, o que o psicanalista tem a oferecer é totalmente diferente do que as pessoas imaginam. Acostumados com o corpo que devem emagrecer, os obesos estranham o espaço aberto para falar sobre suas angústias. Passivos diante dos especialistas do emagrecimento, eles se espantam quando lhes é dada a palavra. Não recebem prescrição, não são recriminadas e, acima de tudo, não precisam subir na balança.
No consultório, queremos saber do vazio, da angústia daquela situação, da insatisfação por trás da comida. Procuramos entender o que acontece no inconsciente daquela pessoa que busca sempre a mesma forma de conforto, mesmo a vida oferecendo um leque vastíssimo de opções para o apaziguamento da dor, tais como trabalhar, criar, se divertir, se relacionar, entre muitas outras.
O obeso acaba se acostumando a não falar do seu peso, daquilo que o incomoda de forma verdadeiramente íntima. É como se estivesse em permanente castigo, adiando a própria vida: faz planos para quando emagrecer. E enquanto o peso ideal não chega, ele não "pode" viver. Aos poucos se forma uma bola de neve, afinal, adiar a vida gera ainda mais angústia.
A psicanálise visa a criação de espaço para que o paciente obeso fale da dor de não conseguir fazer aquilo que lhe é imposto. O fato é que ninguém parece estar interessado em ouvir sobre a subjetividade dessas pessoas - nem o professor da academia, nem a amiga magra e sua nova dieta. Não se importam muito com o que o obeso tem a dizer, ao contrário: as pessoas sempre têm algo a lhe dizer.
Ao longo das sessões de análise, vão aparecendo as relações interpessoais - sempre tão frágeis e superficiais -, o incômodo em viver numa sociedade onde prevalece a valorização exacerbada da aparência, as crises profissionais num mundo extremamente competitivo. Enfim, questões tão comuns na contemporaneidade e que acabam por gerar nas pessoas as mais variadas compulsões, tais como consumismo desenfreado, alcoolismo, drogadicção, e também a compulsão alimentar. As angústias que aparecem na maioria das pessoas é vivida, pelas pessoas obesas, como um vazio a ser preenchido pela comida.
Oferecemos a possibilidade de trabalhar com as causas que geram esse vazio, com os sentimentos de desamparo, fraqueza, e de que maneira isso conduz a uma falsa solução, a comida. Tudo isso por meio de uma escuta especial sobre o que ocasiona essa busca desenfreada e sobre o por quê da repetição de uma solução que, a bem da verdade, não traz satisfação. E tentamos fazer com que o analisando possa olhar para sua angústia e através dela se reinventar.
O processo terapêutico conduz a uma percepção que pode gerar escolhas importantes frente àquilo que incomoda o paciente. Buscar prazeres menos fugidios do que o alimento, que, mesmo ingerido em grandes quantidades, não traz consistência e nem satisfação a longo prazo. A ideia é perceber que conviver com a "falta" e olhar para ela é um meio de se buscar as faltas reais. E corra atrás, porque emagrece!
Brincadeiras a parte, podemos terminar com "Comida", do Titãs. "Você tem sede de que?/ Você tem fome de que?". Afinal, como bem diz a música, "A gente não quer só comer/ A gente quer prazer/ Prá aliviar a dor...".
É, falar emagrece!