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Segundo dados da pesquisa Demografia Médica 2020, elaborada pela Universidade de São Paulo em parceria com o Conselho Federal de Medicina, o Brasil ultrapassou a marca dos 500 mil médicos formados em 2019. Desse número, porém, 24,3% se declararam pardos, enquanto 3,4% se autodeclararam como pretos. Em contraste, 67,1% se identificaram como brancos.
Encontrar um profissional de saúde negro, como visto pelos dados do setor da medicina, é um desafio enorme em um país que ainda patina para vencer o racismo histórico e estrutural que dificulta o acesso a um serviço de qualidade e ao bom atendimento da população negra na área da saúde.
Mas por que essa população ainda se encontra tão distante do setor de saúde? E por que é tão importante oferecer aos brasileiros negros e pardos, grupo que corresponde a 56% da população, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), um atendimento por profissionais que se reconhecem pela mesma cor que eles?
Entrevistamos especialistas da área da saúde e membros de coletivos negros para trazerem pontos de reflexão sobre o assunto.
Profissionais negros da saúde: a importância da referência profissional
Como visto nos dados acima, a formação de profissonais de saúde negros ainda é um grande desafio a ser superado no Brasil. Entretanto, é preciso que isso aconteça o quanto antes, por ela ser essencial para que pessoas negras obtenham um bom acolhimento pela rede de saúde.
De acordo como coletivo Negrex, a importância do atendimento feito por um profissional negro a um paciente também negro se deve a dois aspectos: representatividade e familiaridade, essenciais para proporcionar acolhimento à pessoa.
"A familiaridade pode ser entendida como uma ligação entre médico e paciente. Pode parecer absurdo, porque as pessoas brancas não se sentem ligadas aos seus médicos brancos só por serem brancos, mas para o negro isso é tão mais raro que a conexão surge quase espontaneamente em um sentimento de 'talvez ele me entenda'. Estamos falando de uma população que muitas vezes não conseguiu atingir a graduação, se depara com um profissional que é chamado de 'doutor' e tem ainda o estigma da posição social. Se você é negro, já é complicado, se é negro e pobre, piora", explica o coletivo, em entrevista ao Minha Vida.
"A representatividade é a sensação de 'poder estar lá'. É muito difícil se imaginar ocupando um espaço no qual você não vê pessoas que se parecem com você. Ainda hoje, o imaginário de grande parte da população visualiza o profissional médico como homem, branco, com porte físico modelo e rico, mas, principalmente, branco. Uma pessoa preta não consegue se ver sendo médica porque esse é um espaço que historicamente não a acolheria. Quando um paciente tem contato com um profissional negro, ele vê ali uma oportunidade de se visualizar em situação semelhante e aquele ambiente, que antes não o acolheria de forma alguma, passa a ter algumas brechas para sua inserção", continua o coletivo.
Essas experiências desde conforto e acolhimento, até entender o paciente como indivíduo. "Uma senhora negra ficou muito feliz por ser atendida por uma médica negra porque existem coisas que ela tem vergonha de falar para os médicos brancos (...) Em outra situação, um paciente trazido a nós após um acidente de moto disse que só foi bem atendido porque quem cuidou dele era preto. Nas palavras dele: 'se fosse branco já ia achar que eu era bandido'", pontua o coletivo.
Profissionais brancos e negros: existe diferença no atendimento?
Quando falamos sobre a importância de ter profissionais de saúde negros, vale trazer um adendo reforçado pelos especialistas do Coletivo Negrex: não é a cor de pele que faz um profissional melhor ou pior em serviço. Todavia, "a cor define o quanto podemos entender o outro ou não a partir do que vivemos."
"O básico de qualquer profissão da saúde é você ouvir o paciente e, no mínimo, olhá-lo nos olhos. Até esse direito é negado para a grande parte da população negra. Uma pesquisa feita pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), por exemplo, identificou que os dentistas ofertavam tratamentos mais invasivos para os pacientes negros (a exemplo da extração dentária), enquanto que para os pacientes brancos eram ofertados procedimentos menos invasivos (uma restauração ou tratamento de canal) mesmo quando os dois tipos de pacientes tinham a mesma condição clínica. Mulheres negras são as que menos recebem anestesia para o momento do parto, pessoas negras recebem menos anestesias durante procedimentos odontológicos", diz Arthur Lima, dentista e fundador da AfroSaúde, uma Healthtech criada em 2019 e que busca conectar profissionais negros da saúde e pacientes que buscam representatividade e diversidade no cuidado.
Esse tipo de tratamento dado a paciente negros, como lembra Lima, está relacionado a um mito de que as pessoas negras são mais resistentes à dor. "Essa ideia existe desde o período escravocrata e se reflete na saúde até hoje", observa o dentista.
Impactos dessa diferença na vida do paciente
Não receber um atendimento correto ou minimamente empático pode acarretar em uma série de impactos para a vida, como traumas psicológicos, dificuldade em contar corretamente o histórico clínico, empecilhos no tratamento, entre outros aspectos que comprometem a saúde.
"Muitas vezes um paciente pode deixar de relatar consumo de drogas, por exemplo, por medo de julgamentos", cita Lima. O coletivo Negrex ainda aponta outras perspectivas sobre a vida do paciente quando a empatia racial atua: "Ano passado saiu um estudo [da Universidade de Minesota] sobre mortalidade infantil entre bebês negros que se mostrou ser menor quando eles recebem cuidados de médicos negros."
Profissionais de saúde negros: como ter mais deles?
O racismo estrutural é a principal explicação para a falta de médicos negros e outros profissionais da saúde que assim se identificam na rede. É ele que impede o acesso à educação de qualidade, condições socioeconômicas e uma boa base para que negros alcancem cursos como o de medicina, tradicionalmente tido como uma faculdade de elite no Brasil.
"A maioria dos estudantes de medicina são brancos, com um histórico de boas escolas. São alunos com melhor qualidade de vida e condição socioeconômica e não vivem em ambientes vulneráveis. Se pegarmos um aluno de contexto periférico, escola pública, que vive em um ambiente rodeado de diferentes vulnerabilidades, tudo isso influencia no acesso desses jovens a cursos como medicina e odontologia, por exemplo. Existe esse entrave para a entrada no curso", enfatiza Lima.
O dentista ainda lembra que os obstáculos não param no vestibular, mas ao longo da graduação em si. "São cursos longos, que exigem também um gasto financeiro de permanência na graduação. Por isso, as cotas raciais são tão importantes: elas foram pensadas como estratégia de reduzir esse tipo de iniquidade do acesso, tendo um olhar voltado para quem tem menos, para que seja oportunizada a entrada nestes cursos", conclui o profissional.