Paulo Rosenbaum possui graduação em Medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP-1986), mestrado e...
iMayana acordou atormentada naquela madrugada. Despertou, como de costume, as 3:30 AM em ponto. Como sempre, pensou em telefonar para alguém e não sabia se tinha algum número decente para falar. Acordava e adormecia de novo e de novo e tantas vezes que o resultado, como descanso, era nulo. Mas, por algum mistério atávico de gênero, uma mulher atormentada de madrugada é muito diferente, por exemplo, de um homem. Sofre mais, pelo menos era como Mayana e milhões de mulheres pensavam quando colocavam tudo numa perspectiva de escala universal das perturbações.
Seu tormento não era tão difuso assim. Havia algum incomodo, estava na cara. Incomodada, não resistiu, apesar das recomendações expressas do seu médico de confiança. Ela queria ver como havia ficado. - Desta vez tem que ter dado certo, por favor, por favor. Suas bandagens estavam já caindo mesmo. Nove entre dez pessoas querem remover as ataduras cirúrgicas mais rapidamente do que deveriam.
- Meu nariz ainda é feio.
Podia se lembrar perfeitamente do exato instante no qual sua motivação chegou. Foi há cinco anos e oito meses atrás, durante a época em que sua insônia a visitava um pouco antes, as 2:00 AM. Num destes dias pulou da cama, vagando como alguém sem berço. Como um fantasma assustado deparou com o espelho num móvel da sala.
- Que nariz! Enquanto o escondia todo e ao mesmo tempo pressionava a ponta com o polegar com sua delicadíssima mão direita.
Fez várias simulações de como deveria ser: mais arrebitado, mais fino, mais reto, menos irritantemente simétrico, talvez com uma abertura menor. Esta simulação, que incluía manobras com as mãos e variações de luz com o abat jour passando de um lado a outro de cima para baixo, passou a viciá-la. Às vezes via o ridículo e brincava com suas próprias caretas.
Toda noite lá estava ela, movimentando aflitivamente seu nariz para posicioná-lo numa forma mais alta, mais esguia, mais baixa, mais do jeito que ela o idealizava. Tudo embalado pelos jogos de luzes que ela criava para capturar melhor todas as sombras e angulações de seu órgão respiratório, projetado na parede e no espelho. Além de movimentá-lo passou a desenhar as variações que ficava esboçando mentalmente. E depois rasgava e picotava todos os desenhos com medo que alguém exagerasse e insinuasse que ela poderia estar obcecada. Foi então que decidiu que faria tudo que fosse possível para não ter mais aquele nariz.
- Vão me achar uma doida.
Foi quando o pai, alertado pelo irmão mais novo de Mayana, testemunhou escondido o teatro. Foi ficando respectivamente incomodado, aflito e finalmente horrorizado. Sua linda filha não parecia estar muito bem de cabeça. Como isso foi acontecer justo com sua família que sempre prezou o dialogo? Uma família no qual o acolhimento era a forma mais comum de estar próximo dos problemas dos filhos? Como? Como pode?
- Uma pessoa inteligente entra numa dessas? Não é possível, por um nariz! Qual é o problema com este nariz?
Sem vacilo buscou ajuda profissional séria. Levou-a ao seu clinico de confiança que recomendou uma psicoterapia, a qual por amor ao pai -- ela freqüentou durante dois anos sem ter dito mais do que umas duas dúzias de frases, em geral monossilábicas.
Mayana continuava resoluta a não ter mais um nariz daquele.
De fato, já aos 16, ela era uma bela mulher. Olhando de certa distância seu nariz, objetivamente falando, era irretocável. Claro que, numa inspeção minuciosa, ele devia ter imperfeições -- o mais normal na espécie humana. Mas decididamente ela era linda e talvez pudéssemos arriscar a dizer que muito provavelmente seu nariz fosse o órgão mais harmônico em sua face. Não que alguém tenha ousado confrontá-la. Bastava ver como sua determinação disparava neste tema, para eliminar o menor esboço de oposição às suas convicções.
Os que tentaram manobras medíocres e sedutoras Mas menina, você tem um belíssimo nariz eram merecidamente recebidos com a mudez dos que abolem o contato instantaneamente.
Mayana, depois de ter abandonado os estudos, estava já na quinta cirurgia plástica sem que ninguém, dos clínicos aos cirurgiões plásticos mais conscientes, tivessem conseguido interromper ou bloquear seu ímpeto pelo auxilio das cirurgias plásticas.
Mayana Dung passou a colecionar um estojo onde guardava os vários modelos de nariz: vinham como modelos numerados de clínicas estéticas, do Brasil e de outros países, em catálogos sedutores sob marketing agressivo.
Você não precisa se conformar com o rosto que têm ou Você gosta da sua cara? eram os mais convincentes. Os demais, faço questão de não apresentar.
Foi numa madrugada durante a recuperação de sua quinta cirurgia plástica para reparar danos progressivos das quatro anteriores que Mayana lembrou como tudo começou.
Como poderia supor que ela iria apresentar cicatrização do tipo quelóide, como prever que mexer num órgão perfeito não fosse recomendável?
Foi num dia frio de setembro enquanto assistia com a mãe um programa de reality show que transformava homens e mulheres feias em modelos com torneamento escultural grego. Poderia ser tudo mentira ou aquele tipo de verdade adocicada por truques do cinema. Mas aconteceu, a maciça oferta de beleza apolínea fácil da TV passou a deixar Mayana perturbada, confusa, em seguida eletrizada. Foi convencida (e convenceu-se) que precisava ter outro corpo, outra cara e finalmente conseguiu priorizar o que viraria para ela uma questão de honra: um novo nariz.
Menos de três anos após as primeiras insônias pesadas, já tinha conseguido convencer sua família e seus médicos de que só uma mudança no perfil facial devolveria sua felicidade.
O saldo real é que cinco cirurgias depois, dúzias de antidepressivos rodiziados empiricamente e dois anos sob uma psicoterapia que só fazia o divã transpirar, Mayana percebeu o tamanho da sua loucura. Confortou-se em saber que apesar de jamais poder recuperar sua beleza original o que ela não daria por isso ela devia dar graças aos céus por ter controlado sua má cicatrização.
Sua resignação chegou, apesar do excesso de marcas cirúrgicas no rosto de alguém tão jovem. Nada que um bom chapéu com maquilagem pesada não disfarçasse na maioria dos ambientes.
Mayana, voltou a estudar. Hoje aos 27 anos é enfermeira padrão numa ala de queimados num hospital de Porto Alegre.
Dr. Paulo Rosenbaum é especialista em homeopatia, Mestre em Medicina Preventiva e doutor em Ciências, ambos pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.