Profissional altamente qualificada com mais de 26 anos de experiência em medicina psiquiátrica no ambiente hospitalar e...
i"J., 26anos, chega ao Pronto-Atendimento do hospital acompanhado da mãe que desesperada diz que seu filho precisa ser internado, pois está passando dias seguidos nas ruas, usando drogas. Está descalço, pois seu tênis foi tomado na bocada e já não há o que o segure em casa. J. diz que a fissura é muito intensa e não está conseguindo ficar sem usar a droga. Os dois, principalmente a mãe, solicitam internação. J. já tinha várias internações anteriores e nunca se vinculou bem a nenhum tipo de tratamento extra-hospitalar."
A internação para farmacodependências é uma das ferramentas do tratamento que, quando bem indicada, pode representar uma alavanca fundamental no processo de recuperação. Cabe ressaltar que a internação compreende uma pequena parte do tratamento e que não deve ser utilizada como recurso único.
Um dos problemas mais frequentes que nos deparamos na clínica da dependência como um todo, em especial quando se trata de internação, são os pedidos urgentes de tratamento, que aparecem por parte dos pacientes ou de seus familiares em situações de crise e desespero pela impotência em modificar uma situação dramática em curto prazo. Nestas situações, tudo o que se almeja é uma solução mágica que possa neutralizar uma angústia, esta solução muitas vezes é um pedido de internação.
O acolhimento desta angústia nem sempre é uma internação imediata ou mesmo depois de algum tempo. Quando a internação ocorre nessas condições é muito frequente que, após um ou dois dias, esse desespero desapareça e junto com ele a vontade de se tratar. Ajudar o paciente e sua família a esclarecer o que está se passando e oferecer alternativas de escuta intensiva antes da internação, pode aumentar a eficácia dessa última e a consequência do tratamento em longo prazo.
Os principais objetivos da internação para dependentes químicos são a desintoxicação, a reorientação do projeto terapêutico e o afastamento do meio quando os riscos de vida, de aumento da violência ou da criminalidade deixam de ser administráveis no tratamento ambulatorial. Assim, pode ser um objetivo de uma internação, o tratamento das patologias que acompanham o quadro de dependência, já que a presença de outro quadro psiquiátrico dificulta a aderência ao tratamento psicoterápico, além de refletir em piora do prognóstico.
O momento da indicação de uma internação pode variar muito de paciente para paciente:
- Para aqueles que já haviam iniciado um tratamento, a internação pode contribuir para sua maior adesão e evitar rupturas num processo terapêutico já iniciado.
- Para aqueles que iniciam seu tratamento através da internação, o trabalho intensivo no sentido da busca de um projeto terapêutico pode significar maior rapidez em sua efetivação.
Para todos os casos, a voluntariedade, ou seja, a presença de uma demanda de tratamento é fator fundamental na indicação de uma internação em hospital geral. A voluntariedade no sentido mais genuíno da palavra, ou seja, ação espontânea, nem sempre é o primeiro movimento percebido. São indivíduos que chegam ameaçados e muitas vezes torna-se impossível avaliar algum pedido espontâneo por parte deles.
A questão se complica ainda mais quando nos deparamos com pacientes psicóticos, com diagnóstico de dependência, que nem sempre se apresentam em condições de exercer alguma escolha. Porém, no que diz respeito à farmacodependência, mesmo os pacientes psicóticos são muitas vezes capazes de expressar algum desejo em relação à possibilidade de modificarem seu uso de substâncias psicoativas.
Devemos considerar que mesmo entre os pacientes que expressam um pedido claro de tratamento, encontramos grande ambiguidade em relação ao desejo de tratar-se. Esta ambiguidade é percebida quando o paciente pede por um alívio aqui e agora, mas não se dispõe a fazer escolhas que o ajudariam a alcançar o que procura, ou nega todas as dimensões do prazer com a droga para não correr o risco de enfrentar uma abstinência dolorosa demais naquele momento.
G., inicia sua fala no grupo dizendo que o crack acabou com tudo que havia conquistado e não trouxe nada de bom. "É uma coisa horrível que deveria ser abolida da sociedade..." É a partir deste ponto que um trabalho anterior à internação poderá iniciar-se. O trabalho, portanto é, desde o início orientado na liberdade de escolha e do resgate de alguma autonomia do indivíduo que se encontra numa realidade em que a droga parece a única alternativa possível.
Este protagonismo é fundamental em todo tratamento das dependências, pois inverte a idéia de que o usuário passivamente se deixa levar até uma inexorável escravidão provocada unicamente pelos efeitos deletérios de uma substância química qualquer. Não devemos esquecer que o uso da droga em si é mais um fator no intrincado quebra-cabeças dos elementos que culminam na dependência química: a personalidade, os efeitos biológicos das drogas e o contexto sociocultural no qual esta inserido o individuo dependente.
A internação involuntária ou compulsória marginaliza o individuo que se vê privado de seu direito básico de escolha sobre o tratamento a que deseja ser submetido, assim como pode produzir uma idéia errônea sobre formas de tratamento menos truculentas, afastando-o ainda mais da possibilidade de tratar-se.
A questão do crack em nenhum momento deve ser subestimada em relação à gravidade de sua disseminação pela nossa sociedade. O que se passa é que no desespero ao se buscar alternativas para uma questão complexa, a internação acena como uma possibilidade que conforta momentaneamente produzindo uma falsa sensação de que nossos pacientes estão seguros atrás dos muros de uma instituição de tratamento, longe dos riscos que nossas ruas oferecem.
Como já dissemos anteriormente, o tratamento não acaba na internação (e também raramente deve começar por ela, já que pode produzir a falsa sensação de que o tratamento se reduz a esta intervenção). Ele é um processo que necessita que o individuo esteja na vida para que possa tomar decisões, fazer escolhas que transcendam o consumo de substancias e, assim como afirma Pedro Gabriel Delgado : "O importante é que a intervenção não tenha olhos apenas para o uso da droga, mas para a vida dos sujeitos afetados, sua marginalização e vulnerabilidade" ( Pedro Gabriel - coordenador de Saúde Mental do MS)