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O que é maconha?
Maconha é o nome popular da planta do gênero Cannabis, que apresenta três espécies: sativa, indica e ruderalis, além de um número incontável de variedades (strains) obtidas por cruzamento de espécies e variedades, levando alguns autores a classificá-la apenas como Cannabis sativa.
Além do uso social da droga psicoativa, que é ilegal no Brasil, a maconha tem sido utilizada há milhares de anos com fins medicinais para tratar diversas condições.
"Diferentemente do tabaco e da cocaína, que também já foram considerados tratamentos e mais tarde se revelaram mais prejudiciais do que úteis, se tem observado que alguns componentes da maconha realmente têm utilidade terapêutica", comenta Ivan Mario Braun, psiquiatra especialista em abuso de drogas e autor do livro Drogas - Perguntas e Respostas (Editora Mg).
"A planta da maconha contém diversos componentes (canabinoides) estudados quanto aos seus efeitos terapêuticos, sendo os principais o delta-9-THC (ou THC) e o canabidiol (CBD)", afirma Antonio Waldo Zuardi, professor do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento e coordenador do Centro de Pesquisas em Canabinoides da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP).
Há, ainda, outras substâncias relacionadas à planta que fazem parte desses estudos, como nabilona e dronabinol (sintéticos), tetrahidrocanabivarina (THCV), canabigerol (CBG), além de terpenos (mirceno, limoneno, cariofileno, entre outros).
Como a maconha age no organismo
A ação dos canabinoides no organismo se torna possível graças à existência de receptores naturais para essas substâncias, que são moléculas situadas nas membranas celulares, às quais se ligam os canabinoides.
"Dessa maneira, os componentes da Cannabis podem agir nessas áreas, de acordo com sua afinidade, como uma chave em uma fechadura", exemplifica Karina Diniz, professora do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
Os dois principais tipos de receptores são o CB-1 e o CB-2. "Os receptores CB-1 são encontrados nos terminais centrais e periféricos dos neurônios e, quando ativados, inibem a liberação de uma série de neurotransmissores (substâncias químicas que fazem a comunicação entre os neurônios)", explica Ivan Mario Braun.
Os receptores CB-2 estão localizados predominantemente nas células de imunidade (que defendem o organismo contra doenças) e, quando ativadas, modulam a liberação de citocinas, substâncias que comunicam entre si as células de imunidade.
"Os componentes da maconha que se 'encaixam' em áreas motoras são responsáveis pela melhora da espasticidade em pacientes com esclerose múltipla. Já os que se 'encaixam' nas áreas responsáveis pela sensação de náusea atenuam os efeitos da quimioterapia, por exemplo", esclarece Karina Diniz.
Efeitos da maconha
O THC presente na maconha pode ser considerado um perturbador do sistema nervoso central, uma vez que se "encaixa" em receptores que ficam nas áreas do nosso cérebro responsáveis pela sensopercepção.
A substância é conhecida por seu efeito estimulante e psicoativo, mas também pelas sensações analgésicas, antieméticas (prevenindo náusea e vômito) e oxígenas (aumentando o apetite), como afirma Virgínia Martins Carvalho, professora de Toxicologia da Faculdade de Farmácia da UFRJ. Por conta disso, medicamentos com essa substância têm sido prescritos para controlar vômitos durante a quimioterapia, por exemplo.
O canabidiol (CBD), por sua vez, é depressor do sistema nervoso central e causa efeitos anticonvulsivos, ansiolíticos, analgésicos e anti-inflamatórios - daí seu uso para casos de epilepsia, esquizofrenia e esclerose múltipla.
"É importante ressaltar que o uso medicinal de substâncias canabinoides têm efeitos colaterais como qualquer outra medicação, variando de acordo com os componentes e a sensibilidade do indivíduo", frisa Karina Diniz.
O psiquiatra Ivan Mario Braun explica que a presença do THC, principalmente, pode resultar em secura na boca, ideias delirantes, palpitações cardíacas, aumento excessivo do apetite, entre outros sintomas.
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Os efeitos da maconha medicinal são diferentes do uso social?
Para Karina Diniz, o uso medicinal envolve lançar mão de componentes que ajam no "alvo" esperado. "Não se fala em efeitos mais leves, mas efeitos buscados. Assim, medicamentos para tratar espasticidade muscular (decorrente da esclerose múltipla), por exemplo, devem conter componentes que agem preferencialmente em áreas motoras", justifica.
Quando há outros efeitos além dos buscados pela medicação, fala-se em efeitos colaterais. Eles podem ocorrer porque não necessariamente a substância usada para sintomas motores age somente em áreas motoras.
A intensidade dos efeitos colaterais varia de acordo com o indivíduo, assim como em qualquer outro remédio.
Usos medicinais da maconha
As substâncias mais comumente prescritas são:
- Canabidiol (CBD)
- Naxibimols (extrato vegetal com THC e CBD, também conhecida como Sativex)
- Dronabinol (THC sintético, cujo nome do medicamento atende por Marinol) e nabilona (molécula sintética semelhante à do THC).
"O uso geralmente acontece através da vaporização da planta, por via oral (na forma de pílulas), oro-mucosa (absorção pela mucosa oral) ou retal, para uma absorção mais rápida", conta Ivan Mario Braun. Para o psiquiatra, o uso do cigarro de maconha, por outro lado, é altamente contestável em função da presença conjunta de altas concentrações de THC, com potencial de abuso.
O canabidiol tem sido estudado como opção terapêutica para um amplo espectro de condições médicas (como asma e dores crônicas, por exemplo), porém a maior parte desses estudos ainda está na fase pré-clínica em animais de laboratório.
"Até o momento, as doenças que apresentam maior nível de evidências de efeitos terapêuticos do CBD são a epilepsia, esquizofrenia e Doença de Parkinson, a primeira tendo o tratamento autorizado com a substância. As duas outras já possuem estudos controlados e duplo-cegos em pacientes, porém ainda faltam estudos multicêntricos, com número elevado de pacientes", pondera Antonio Waldo Zuardi.
Atualmente, a nabilona e o dronabinol têm sido utilizados para reduzir náuseas provocadas pela quimioterapia no tratamento do câncer. O último também é associado ao aumento de apetite em pacientes soropositivos.
"Já o Sativex, aprovado em países como Reino Unido, Espanha e Nova Zelândia, tratam a espasticidade em pacientes com esclerose múltipla", revela Karina Diniz.
No Brasil, o primeiro e único remédio à base de canabinoides registrado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é o Mevatyl, um spray bucal com os princípios ativos tetraidrocanabinol (THC) e canabidiol (CBD), ambos isolados a partir da espécie vegetal Cannabis sativa. Em outros países, o nome comercial do medicamento é Sativex.
"Registrado em 2017, o Mevatyl é indicado para controle de espasticidade na esclerose múltipla em pacientes adultos e vendido em drogarias com um custo alto", frisa Virgínia Martins Carvalho. O remédio é comercializado com tarja preta em sua rotulagem e a sua dispensação fica sujeita à prescrição médica por meio de notificação de receita, segundo a Anvisa.
Lei e importação
Apesar do uso limitado da maconha para fins medicinais no Brasil, "a Anvisa permite em caráter excepcional a importação de produtos à base de canabinoides por pessoas físicas que tenham prescrição médica e a intermediação de algumas entidades específicas", detalha Emílio Figueiredo, advogado da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas.
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Emílio conta que também existem permissões em forma de salvo-conduto judicial para alguns pacientes cultivarem a Cannabis em suas casas e preparar o remédio. "Há, ainda, uma autorização judicial para uma associação na Paraíba [a ABRACE - Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança] cultivar e fornecer o óleo da planta para seus associados", completa.
O trâmite para o medicamento chegar ao Brasil começa junto ao médico, com prescrição e laudo que justifiquem a necessidade do uso do produto à base de Cannabis. Além disso, a Anvisa também exige a assinatura de um termo de responsabilidade.
"Depois de enviar esses documentos e preencher um formulário online, é preciso aguardar a autorização do órgão. Com isso, o paciente pode importar o produto receitado", finaliza Emilio Figueiredo. O cadastro é válido por um ano. Após esse período, ele pode ser renovado. Todos os detalhes do processo podem ser encontrados em Orientações sobre importação de canabidiol, no site da Anvisa.
Recentemente, a agência regulamentou pela primeira vez os critérios para a importação de produtos sem registro no Brasil. Um dos principais pré-requisitos para um medicamento ser importado para o país é sua indisponibilidade no mercado nacional e casos em que não há alternativas terapêuticas ou produtos usados que possam substituir o remédio à base de Cannabis.
"É importante assinalar que o CBD que tem sido importado até o momento não é reconhecido como medicamento em seus países de origem, sendo comercializado como suplemento alimentar e, portanto, sem o controle de qualidade exigido para tal. Só muito recentemente, no final de junho deste ano, o CBD foi credenciado como medicamento pela Food And Drug Administration (FDA), agência reguladora norte-americana, para uso em pacientes com as síndromes neurológicas Dravet e Lennox Gestaut que são resistentes ao tratamento", destaca Antonio Waldo Zuardi.
A maconha medicinal cura doenças ou é apenas coadjuvante em tratamentos?
"Os efeitos dos canabinoides no alívio de sintomas são bastante claros e consistentes", garante Renato Malcher Lopes, neurocientista, professor do departamento de Ciências Fisiológicas na UnB e coautor do livro Maconha, Cérebro e Saúde (Vieira & Lent Casa Editorial).
No entanto, apesar de suas diversas indicações, ainda não há estudos clínicos sobre cura de doenças, apenas controle, o que melhora significativamente a qualidade de vida dos pacientes, como reforça Virgínia Martins Carvalho.
A maconha medicinal pode causar dependência?
O uso medicinal da maconha envolve o fornecimento de quantidades limitadas de substâncias ao paciente, de acordo com critérios médicos e por prescrição.
Ainda assim, o psiquiatra Ivan Mario Braun faz um alerta para o potencial de abuso da maconha medicinal em função da ação do THC sobre os receptores CB-1, no sistema nervoso central. "No entanto, quando se usa apenas o canabidiol, não há esse risco", afirma.
Uso social da maconha
Hoje, a lei brasileira criminaliza quem pratica atos como porte de maconha para consumo próprio, bem como adquiri-la, guardá-la, mantê-la em depósito, transportá-la ou trazer consigo, como afirma o advogado Emílio Figueiredo.
Contudo, a criminalização do usuário não prevê penas privativas de liberdade, ou seja, ele pode ser processado criminalmente, mas não preso, sendo passível de penas como advertência, prestação de serviços à comunidade e medidas educativas.
Sobre a descriminalização, o que há de mais concreto é o julgamento do Recurso Extraordinário 635.659 pelo Supremo Tribunal Federal, no qual é analisado o direito ao porte de drogas para consumo próprio. "Esse julgamento está interrompido com três votos favoráveis à descriminalização", diz Emílio Figueiredo.
Os países onde a maconha é estritamente legalizada para o uso social adulto hoje são Uruguai e Canadá. Nos Estados Unidos, existem nove estados onde o uso social é regulado: Alasca, Califórnia, Colorado, Maine, Massachusetts, Nevada, Oregon, Vermont e Washington.
Os efeitos do cigarro de maconha vendido nas ruas pode variar de acordo com o indivíduo (estado psicológico e sensibilidade), ambiente onde é consumido e concentração de substâncias nele presentes. Se houver maior presença de CBD, por exemplo, pode haver sensação de sonolência. O THC em maior quantidade, por outro lado, pode levar à euforia.
Distúrbios de memória, aceleramento do coração, olhos vermelhos, tosse, aumento de apetite e perda de noção do espaço estão entre os sintomas mais frequentes do uso de cigarros de maconha.
Referências
- Antonio Waldo Zuardi, professor do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento e coordenador do Centro de Pesquisas em Canabinoides da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP)
- Ivan Mario Braun, psiquiatra especialista em abuso de drogas e autor do livro Drogas - Perguntas e Respostas (Editora Mg)
- Karina Diniz, professora do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp
- Virgínia Martins Carvalho, professora de Toxicologia da Faculdade de Farmácia da UFRJ
- Renato Malcher Lopes, neurocientista, professor do departamento de Ciências Fisiológicas na UnB e coautor do livro Maconha, Cérebro e Saúde (Vieira & Lent Casa Editorial)
- Emílio Figueiredo, advogado da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas.