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Não é de hoje que sabemos do enorme número de pessoas que passam fome ou sofrem com desnutrição no Brasil. De acordo com o relatório "Estado da Insegurança Alimentar no Mundo 2012", publicado pela ONU, cerca de 13 milhões de pessoas passam fome ou sofrem com desnutrição no país. E esses números diminuíram se comparados com a década passada: enquanto de 14,9% da população estava com desnutrição em 1990, nos anos de 2010 a 2012 essa porcentagem abaixou para 6,9%. No entanto, ainda há muito a ser feito e existem vários projetos ao redor do mundo voltados exclusivamente para essa questão.
Um dos trabalhos de maior notoriedade no ramo é o da BioFORT, uma organização coordenada pela Empraba (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) que está desenvolvendo alimentos chamados de biofortificados - ou seja, enriquecidos com algum tipo de nutriente. O principal objetivo do projeto é garantir a segurança alimentar aumentando os teores de ferro, zinco e vitamina A na dieta da população mais carente. A BioFORT conta com mais de 150 parcerias em 11 estados brasileiros, entre universidades, centros de pesquisa nacionais e internacionais, associações de produtores, governo, prefeituras e organizações não-governamentais. Quer entender melhor como a biofortificação funciona e de que forma será comercializada? Tire suas dúvidas com os especialistas:
Os alimentos biofortificados são transgênicos?
Não, a biofortificação sofre um processo diferente dos alimentos transgênicos. "Nosso processo consiste em cruzar plantas da mesma espécie para obter um melhor resultado, diferente dos transgênicos, no quais são cruzados genes de espécies diferentes", diz a engenheira de alimentos Marília Nutti, líder do projeto BioFORT e pesquisadora da Embrapa. A especialista deu como exemplo o feijão: os cientistas cruzam uma muda de um tipo de feijão que é consumido largamente pela população com outro tipo que possui uma quantidade maior de ferro, e a muda final será a de um feijão com um maior teor de ferro. "Normalmente o feijão carioca que nós consumimos tem por volta de 50g de ferro por quilo de feijão, e conseguimos chegar a um feijão que está com 90g de ferro - é quase o dobro da quantidade", afirma Marília Nutti. No caso de um alimento transgênico, o cruzamento acontece entre seres de naturezas diferentes, como uma planta e uma bactéria, por exemplo, e esse cruzamento é feito exclusivamente em laboratório. "O processo de biofortificação também é conhecido por melhoramento genético convencional."
Quais alimentos estão sendo biofortificados? Esse processo causa alguma alteração na tabela nutricional?
Arroz, feijão, feijão-caupi, batata-doce, milho, trigo e mandioca são os alimentos que estão sendo biofortificados no projeto. De acordo com a engenheira de alimentos Marília, eles não sofrem qualquer alteração na tabela nutricional, além do nutriente enriquecido. Veja a diferença:
Por que ferro, zinco e vitamina A?
Cultivares | Convencionais | Biofortificados |
Milho | Em média, 4,5mg de vitamina A por grama de milho em base seca. | Até 9mg de vitamina A por grama de milho em base seca. |
Batata-doce | Até 10mg de betacaroteno por grama de raízes frescas | Média de 115mg de betacaroteno por grama de raízes frescas |
Trigo | Em média, 30mg de ferro e 30mg de zinco por quilo em trigo integral. | Média superior a 40mg de ferro e 40mg de zinco por quilo de trigo integral. |
Feijão-caupi | Média de 50mg de ferro e 40mg de zinco por quilo de produto. | Média de 77mg de ferro e 53mg de zinco por quilo de produto. |
Mandioca | Em variedades de polpa branca não há teores expressivos de betacaroteno. | Até 9mg de betacaroteno por grama em raízes frescas. |
Feijão | Em média, 50mg de ferro e 30mg de zinco por quilo de feijão tipo carioca. | Em média, 90mg de ferro e 50mg de zinco por quilo de cultivar. |
Arroz | Em média, 12mg de zinco e 2mg de ferro por quilo de arroz branco polido | Média de 18 mg de zinco e 4 mg de ferro por quilo de arroz branco polido |
Uma das doenças mais relacionadas à desnutrição e muito presente no Brasil é a anemia ferropriva, causada pela deficiência de ferro no organismo. De acordo com a BioFORT, as fontes mais importantes de ferro para a população brasileira são o feijão e carnes vermelhas. "Ao enriquecer o feijão e o trigo com quantidades ainda maiores desses nutrientes, poderemos reverter um número muito maior desses casos", diz o nutrólogo Celso Cukier, coordenador do Centro de Estudos do Hospital São Luiz, em São Paulo. O zinco ajuda a fortalecer o sistema imunológico e é anti-inflamatório, além de ser um nutriente que está presente em alimentos ricos em ferro, por isso a BioFORT acredita que a deficiência para ele também é incidente. "Já a vitamina A é um micronutriente essencial para o bom funcionamento da visão e do sistema imunológico do organismo humano, sendo que sua deficiência tem provocado a cegueira em milhares de crianças, que são as maiores vítimas de desnutrição", diz a pesquisadora Marília.
Qualquer alimento pode ser biofortificado?
Nem sempre. Para acontecer a biofortificação, é necessário realizar cruzamentos de forma natural, e para isso é preciso ter duas variedades do mesmo alimento com características de destaque diferentes. "Por exemplo, em um banco de dados com mais de mil variedades de feijão, é selecionado um que tenha como característica alto teor de ferro e outro que tenha pouco ferro, mais alta taxa de produtividade", explica Marília Nutti. "Depois de uma sequência de cruzamentos, temos uma nova forma de cultivar que possui as duas características", completa. Dessa forma, se não for possível encontrar duas variedades do mesmo alimento que possuam as características procuradas, não é possível biofortificá-lo.
Esses alimentos podem levar a um excesso de nutrientes no organismo?
De acordo com a BioFort, não nos cultivos que estão sendo trabalhados no projeto. "Eles estão sendo desenvolvidos para aumentar os micronutrientes de forma que atinjam pelo menos 50% da dose diária recomendada", declara a líder do projeto Marília. Sendo assim, a biofortificação é um esforço complementar aos demais programas existentes para a deficiência de micronutrientes. "O processo de biofortificação pode até ser repetido a um ponto em que os alimentos tenham quantidades maiores do que as recomendadas, mas apenas se for executado de maneira descontrolada."
As quantidades do alimento a serem ingeridas diminuem?
Não. "Como é pensado para enriquecer a alimentação de forma saudável, as quantidades de nutrientes inseridos são pensadas nas porções padrão de consumo diário", diz o nutrólogo Celso.
Os alimentos biofortificados podem substituir os suplementos vitamínicos?
O nutrólogo Celso afirma que a biofortificação pode ajudar na prevenção de doenças que geralmente são tratadas com o uso de suplementos, como a anemia. "No entanto, isso não serve como única solução para quem já tem uma doença instalada e precisa do suplemento."
Como eles serão comercializados?
"A intenção geral do projeto é que os alimentos sejam amplamente consumidos pela população brasileira, incluindo mercados e merenda escolar", afirma Marília Nutti. Hoje, os biofortificados estão sendo cultivados e incluídos na merenda escolar de estados no nordeste, onde a população é mais necessitada. Se essas experiências derem certo, os biofortificados entrarão nas prateleiras do resto do Brasil. "A ideia é aliar o consumo do alimento a esforços de educação nutricional, ensinando às crianças a importância de uma dieta balanceada", diz a pesquisadora.
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O nutrólogo Celso alerta para o fato de existirem produtos no mercado que anunciam nas embalagens serem enriquecidos com vitaminas, como biscoitos. "Esse tipo de alimento industrializado com o acréscimo de nutrientes feito em laboratório apresenta quantidades muito pequenas, que não irão trazer benefícios significativos à dieta."