Formada em psicologia pelo Centro Universitário Paulistano e em psicanálise pelo Centro de Estudos em Psicanálise.Especi...
iUma gravidez muitas vezes está relacionada a um momento especial, trazendo consigo os desejos tanto da mulher quanto do parceiro e dos familiares. Gerar uma vida pode representar sonhos e expectativas de mudanças e novidades e por isso é muito comum ser considerada uma fase tão especial, independente se é uma gestação programada ou não.
O vínculo afetivo mãe e bebê já pode existir antes mesmo da gravidez, vai depender do desejo e fantasias desta mulher, deste homem/pai, deste casal. E durante a gravidez, desde sua notícia, a relação de afeto entre mãe e bebê já pode ser vista, vivida e sentida. Mesmo no início de uma gravidez já podemos observar os sonhos e os planos, desta mãe e pai que se preparam para nascer junto a seu bebê e conforme o desenvolvimento da gestação esses sonhos tendem a ser intensificados e aos poucos vão ganhando formas e movimentos para a nova vida que vai chegar. Porém, as vezes esta história de desejos é interrompida e a perda se faz presente, antes mesmo do nascer.
Uma dor muitas vezes reprimida
Por vezes ouvimos que o aborto espontâneo é mais comum do que imaginamos, principalmente no primeiro trimestre da gestação. É provável que conheçamos alguém, que já tenha enfrentado tal situação ou mesmo você já tenha passado por tal momento. Claro que devemos entender que este termo espontâneo possui embasamento médico e provavelmente no intuito de explicar que por vezes o corpo tende a não estar pronto para conter uma gravidez naquele momento, por diversas razões e assim provoca o aborto como uma reação do organismo, não sendo necessariamente uma falha ou problema que interferirá em outras gestações, trata-se de uma reação do organismo no momento o que explica a perda.
Como psicóloga e psicanalista percebo em torno deste assunto que o termo "espontâneo" pode ser uma porta aberta para uma má interpretação desta fase emocional tão delicada e que na verdade representa a perda de um filho, um filho que representa sonhos, sonhos que representam mudanças, mudanças que envolvem um todo... o luto!
Quando ouvimos o termo espontâneo parece que ele propõe considerarmos com maior aceitação a ideia da perda do que, por exemplo nos casos acidentais. Este último tende a gerar uma liberdade maior da expressão da raiva, do sofrimento, do choro, da compreensão e disposição das pessoas ao redor da perda e do luto. Já nos casos tidos como espontâneos podemos notar com frequência uma reação mais repressora do luto, impondo de certa forma que se deve entender a perda sem muito espaço para poder senti-la.
É muito comum os pais que perdem uma gestação espontaneamente, como é dito, ouvirem conselhos impeditivos do luto como: "Foi melhor assim"; "Provavelmente não estava na hora"; "Vocês vão engravidar novamente"; "Muitos passam por isso"; "É normal acontecer, então não precisa sofrer"; "Olhem o lado bom, agora terão um anjo olhando por vocês", entre outros... Este tipo de fala nos demonstra quanto o meio não está aberto ou preparado para entender que quando falamos de aborto, falamos igualmente de perda e morte, tanto de um filho como de seus pais e suas expectativas e planos. Um momento sofrido e merecedor de acolhimento, respeito e de disponibilidade de alguém que possa ouvir e entender tal dor.
As mulheres que passam por um aborto costumam sentir muita culpa e tendem a se cobrar por não terem evitado tal perda. Carregam consigo esta fantasia de falha e incapacidade de gerar, mesmo que ouçam dos médicos ou familiares que não são responsáveis por tal perda. A perda de um filho sempre será uma perda intensamente dolorida, não importando a idade do filho. Porém a perda de um filho que nunca chegou, nunca foi ou será carregado, nunca se ouvirá seu choro ou sentirá seu cheiro, parece gerar inúmeros conflitos emocionais e misturar sentimentos. Algumas mães parecem deslocar seu sofrimento de perda para uma culpa, como se fosse uma chance de poder expor sua dor ou mesmo podem negar e evitar qualquer sentimento ou fala a respeito, uma fase comum do luto. Negar é uma tentativa desesperada de mantê-lo vivo na fantasia, de afastar a dor e de evitar a confusão da perda daquele que não chegou concretamente e não teve tempo de ser reconhecido pelo meio. É uma reação que demonstra o tamanho do sofrimento que está sentindo, a ponto de evita-lo a todo custo.
Existe forma certa de lidar com esse luto?
Assim como em qualquer luto, não há técnicas ou conselhos específicos ou totalmente validos para lidar ou ajudar quem está passando por tal momento. O ideal é sempre observar a pessoa e dar espaço para que ela manifeste sua dor da forma que for possível, sendo sempre respeitada acima de tudo. Não ignorando ou disfarçando a realidade sofrida, assim como também não invadindo e forçando um sofrimento, um choro ou tristeza. Uma ajuda profissional e psicológica pode ser de grande ajuda, caso a pessoa enlutada demonstre muita dificuldade em dar continuidade a seu dia a dia, como trabalhar, estudar, comer, se cuidar. Se com o passar do tempo o sofrimento mostrar que se intensifica, pode ser de grande valia considerar essa alternativa.
Mas muitas vezes as mães, e até mesmo os pais, buscam um acolhimento psicológico nesta fase, tanto individual quanto em grupo, pois sentem a necessidade de falar e serem ouvidos, assim como de observar outras histórias similares para poderem passar melhor por esta dor, principalmente porque não encontram compreensão fora destes espaços. É comum as mães enlutadas por um aborto comentarem que seus familiares ou mesmo médico as orientam para não chorar e sofrer e para tentar uma gravidez logo em seguida, indicando que o meio é um grande causador da principal negação por este luto. Enquanto que através de um apoio profissional adequado ou falando e ouvindo pessoas com histórias parecidas sentem que podem sentir e encarar melhor sua dor com a chance de um dia poder conviver com ela sem sofrimento.
Outro ponto que é merecedor de muita atenção e que nos mostra o quanto este luto é desamparado e pelo meio, são as diversas histórias dessas mães que quando já no hospital e já ciente de sua perda são colocadas ou mantidas em salas cirúrgicas ao lado de mães que estão parindo seus filhos com vida. Ficam ali assistindo e ouvindo aquelas mães que choram de alegria com seus bebês, enquanto ela chora quietinha sem entender ainda direito o que está acontecendo, tentando assimilar a notícia do fim e com a única certeza de que não ouvirá o choro do seu bebê.
Deixo aqui aberto um a respeito da falta de espaço, de lugar e de reconhecimento para estas dores tão reais e merecedoras de acolhimento. É preciso entender que quando se fala de perda ou morte fala-se também de luto. Luto é um momento necessário, pois é a chance que temos, após uma morte, de algum dia voltarmos a esperar vida da vida. Cada pessoa no seu tempo, cada história com seu detalhe, mas em comum deveríamos todos ter a chance de chorar espontaneamente nossa perda!