Redatora de saúde e bem-estar, autora de reportagens sobre alimentação, família e estilo de vida.
A infância é uma fase carregada de significados. É tempo de descoberta, criação de vínculos, aprendizado, frustrações, mas principalmente, a infância é um período de espontaneidade. Já reparou como uma criança não segura o choro quando algo à machuca? O mesmo acontece com a raiva. Quando se sentem frustrados fazem questão de acessar o sentimento sem vacilar, até mesmo quando o alvo são os pais. Da mesma forma, quando se sentem alegres, manifestam esse sentimento independentemente de onde estejam.
Talvez esse seja um dos valores que mais separam crianças de adultos. Os pequenos têm uma capacidade inata de serem leais a si mesmos. Pode parecer um valor de pouca importância olhando de fora, mas você já pensou quantas concessões nós adultos fazemos para tentarmos nos enquadrar em padrões? Quantas vezes você já disse sim quando não queria? Ou abriu mão de suas convicções e não disse o que sentia por medo de ser julgado?
Isso acontece, em grande parte, pelo fato de elas ainda não terem desenvolvido completamente seu mecanismo de regulação das emoções e não entenderem completamente como funciona o mundo. Também não estamos querendo que os adultos passem a se comportar como se estivesse na primeira infância ou de forma egocêntrica. Mas é possível afirmar que existe uma lealdade com os próprio sentimentos durante a infância e essa sensação é importante para a saúde mental, pois permite-se agir de acordo com o que se sente.
À medida que vamos crescendo esse valor diminui dentro de nós e essa falta de escuta consigo mesmo potencializa sentimentos de frustração, sensação de falta de propósito na vida e descrença. Acreditamos que deixar de lado nossa espontaneidade e inocência seremos mais adultos e respeitados. Mas como esperar essa consideração dos outros se não somo capazes de te-la com nós mesmos?
A vida adulta padece de seriedade, na verdade, achamos que sendo mais sisudos, nos tornamos mais maduros. Maturidade não tem a ver necessariamente com levar a vida de forma contratual, mas sim de conhecer os próprios limites e agir de acordo com o que acredita. Isso sim é capaz de tornar uma pessoa mais sábia.
Estamos no período de comemoração do dia das crianças. A data costuma ser lembrada com um viés comercial, de agradar e comprar presentes. Mas essa não deveria ser a única representação do período. Afinal, todos nós já fomos crianças e por mais que pareça que ?adultecemos? em demasia, ainda guardamos resquícios da espontaneidade, curiosidade e criatividade comuns ao período da infância. Neste 12 de outubro, mas não somente hoje, que tal se permitir entender, revisitar e acolher a criança que existe dentro de você?
Infância: uma fase cheia de potência
Crianças têm mais facilidade em perceber o mundo com olhar de encantamento, isso faz com que sejam disponíveis para descobrir e se conectar com o que lhes é apresentado. O professor de psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie Eduardo Fraga explica que desde o nosso nascimento possuímos uma criatividade originária que, quando desenvolvida, contribui para vivenciarmos nossa existência de forma verdadeira e lúdica. E podemos acreditar que as crianças carreguem um pouco dessa criatividade em sua essência.
A psicóloga Adriana Klisys, diretora do espaço Caleidoscópio - Brincadeira e Arte e autora do livro ?O que é Jogar? diz que a infância é reconhecida como um período vigoroso. Um dos motivos seria o fato de criança ser capaz de falar por si mesma. ?Eles são verdadeiros doutores de sentimentos, são honestos consigo e têm compromisso com o que é verdadeiro para elas mesmas?, explica.
Além disso, a infância conta com um poderoso recurso: a brincadeira. Sim, a prática de criar novos mundos e diferentes possibilidades de interação coloca a criança em contato com a ludicidade e criatividade da vida. O ato de brincar é tão poderoso que representa mais do que uma atividade de entretenimento: é um direito presente no artigo 16 do Estatuto da Criança e Adolescente.
Outro aspecto importante da infância, amplificado não apenas pela brincadeira, mas pela construção dos afetos, é a estrutura emocional. Segundo a psicopedagoga e psicanalista Mônica Pessanha, quando uma criança brinca tem possibilidade de descobrir o mundo e exercitar sua espontaneidade, vive sua infância na totalidade e tem recursos para avançar para as próximas etapas de sua vida com maior saúde emocional.
Nem toda criança interior remete à infância
É comum achar que a criança interior tem relação somente com uma versão mirim de cada um de nós. No entanto, esse conceito vai além das lembranças da infância. Segundo Adriana, entrar em contato com a criança interior é se conectar com uma energia de vitalidade, curiosidade, vontade de descobrir e viver coisas novas. ?É possível ter uma criança interior aos 50 ou 60 anos. Isso é manifestar a potência plena que cada um traz consigo?, esclarece a especialista.
Enxergar a criança interior mais como uma força de vitalidade do que necessariamente uma versão infantil possibilita deixar que ela faça parte também da vida adulta. Mesmo porque é importante levar em consideração que nem todas as pessoas tiveram a chance de viver uma infância plena e com acolhimento, mas isso não exclui a possibilidade de que elas possam entrar em contato com a energia que carregam desde a infância.
Quando a vida fere com a sensação de brilho
Acessar nossa vitalidade e trazer a tona o melhor de nós parece uma tarefa fácil e bonita na teoria, mas na prática nem sempre o terreno é tão fértil. A razão disso é que ao longo da vida nos deparamos com situações que nos causam traumas, crenças limitantes, ficam sem resolução dentro de nós e, muitas vezes, subtraem nossa potência criativa. É assim para todo mundo, em maior ou menor grau.
A consequência dessa bagagem de emoções mal resolvidas faz com que não seja fácil se sentir quite com a vida, levando a quadros de depressão, ansiedade, estresse e outros distúrbios de saúde mental. Quando esse tipo de situação acontece é necessário procurar ajuda especializada.
A psicóloga Mônica explica que muitas das questões existenciais tratadas nos consultórios têm justamente relação com a infância, como experiências traumáticas, cuidadores displicentes, traumas, agressões físicas e verbais entre outros. ?Quando uma pessoa é exposta a uma grande quantidade de traumas ainda na infância ela anula a autenticidade que existe nela e pode carregar essa questão em sua vida adulta, bloqueando assim seu potencial criativo?.
Mas por qual motivo é tão necessário zelar para que a criança tenha uma infância acolhedora e saudável? Primeiramente é importante prestar atenção a aspectos fisiológicos. O cérebro da criança tem uma grande capacidade de aprendizado e aquisição de informações, quando esse estímulo não é feito de maneira saudável e ela é exposta a situações traumáticas ainda na infância a tendência é que essas memórias cresçam e interfiram na saúde mental na vida adulta.
Para que as situações vividas não se tornem constantemente memórias mal resolvidas dentro de nós, é necessário um ato de coragem: entrar em contato com elas e se permitir viver as sensações trazidas por ela. Lembra da lealdade com os sentimentos que falamos no começo da matéria? A partir do momento que acessamos nossos sentimentos e acolhemos as manifestações que se apresentam, temos a chance de aliviar o peso que elas representam. Essa experiência dói, pode evidenciar um lado feio de nós, mas ao mesmo tempo, quando consegue-se elaborar, entender e acolher a situação, pode-se alcançar grandes aprendizados.