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Cinquenta e cinco dias separaram o diagnóstico e a morte de Carlos. Com o diagnóstico vieram o medo, a insegurança e a sensação de incapacidade. Mas, com a morte, surgiram alívio, conforto e gratidão - sentimentos que só foram possíveis graças ao programa de cuidados paliativos que recebeu.
Carlos exibia sorrisos e esbanjava saúde no auge de seus 58 anos. Só que as cores de sua face, sempre tão vivas, começaram a dar lugar a uma pele amarelada. Foi assim que descobriu que estava com um câncer agressivo que, até hoje, sete anos após sua morte, não sabem ao certo em qual órgão surgiu.
"Sabíamos que ele iria morrer logo. Aquela angústia de ver meu amor sofrer e nossa vida de casal, de quase 50 anos juntos, se esvaindo foi adiantada. Você vê que não tem alternativa, quer que todo o sofrimento acabe logo", diz Bia Marangoni, esposa de Carlos.
A verdade é que a notícia de uma doença sem cura e progressiva dói. Em Carlos e sua família, doeu mais do que o próprio câncer, já que o psicanalista não sentia nenhum tipo de desconforto, mesmo estando com uma enfermidade em estágio avançado. Era como uma vela que ia se apagando, dia após dia.
Na tentativa de reduzir o sofrimento de todos os envolvidos, médicos sugeriram o tratamento por cuidados paliativos e a família resolveu aderir.
"A gente vive como se nunca fôssemos morrer, como algo que parece distante. Quando você vê a morte chegando, o mundo cai sobre sua cabeça. E com os cuidados paliativos, acabamos vendo a morte como ela é: que ela existe, que pode ser imprevisível e, principalmente, que pode ser um alívio", ressalta Bia.
A aposentada diz que foi a melhor decisão que poderia ter tomado. Foi montada uma estrutura em sua própria casa para atender às necessidades do marido, que não queria mais ficar no hospital.
Médicos paliativistas faziam visitas, medicavam, tratavam, conversavam e ligavam ao menos três vezes por dia, para acompanhar a saúde física, mental e espiritual de Carlos. Além disso, toda a família também contava com amparo psicológico.
"Um dia ele estava agitado, perturbado, num domingo à noite e chuvoso. Não sabíamos o que fazer, fiquei desesperada. A psicóloga veio sem medir esforços e isso nos comoveu muito", conta a esposa.
Durante esse período, compreenderam que a morte era um fato e colocaram as cartas sobre a mesa para romper o tabu de se falar sobre o assunto. Com os cuidados paliativos, conseguiram rever toda a trajetória da família, rompendo ressentimentos, acertando contas, discutindo sobre o futuro e até definindo o velório.
Cada um estava com sua dor, mas tranquilos por Carlos não ter sentido incômodo algum em sua partida e ter ficado consciente até o último suspiro.
O que são cuidados paliativos
Apesar de seus inúmeros significados, atribuídos por cada cultura, a árvore da vida carrega consigo um simbolismo sagrado indiscutível. Suas raízes robustas são associadas à força; sua copa densa, à vitalidade; e seus galhos retorcidos, à superação.
É um elemento capaz de representar os principais sentimentos envolvidos no dia a dia do paciente e do familiar que renasce, com um outro olhar sobre sua própria vida, graças aos cuidados paliativos.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), cuidados paliativos "consistem na assistência promovida por uma equipe multidisciplinar, que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e de seus familiares diante de uma doença que ameace a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, da identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais".
O trecho acima pode confundir algumas pessoas, que costumam associar cuidados paliativos com o fim da vida. O vice-presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), Douglas Crispim, deixa a definição oficial mais clara e sensível:
Cuidados paliativos são uma modalidade multiprofissional voltada para a prevenção e tratamento de pacientes e familiares em situações de doenças graves e progressivas, independentemente se há cura ou se o paciente se encontra em estado terminal.
Assim, os cuidados paliativos não combatem somente os sintomas de uma enfermidade, mas, sim, todos os demais problemas que a doença traz, como dependências, inseguranças, isolamento social, fraqueza, tristeza e culpa.
"Atendi uma paciente que tem câncer e tem cura, mas os efeitos colaterais estão gerando uma piora na qualidade de vida dela. E os cuidados paliativos são isso: reduzir o sofrimento não só físico, mas também psicológico, espiritual, social e familiar", afirma o paliativista.
Assinar o atestado de vida
Os cuidados paliativos povoam o imaginário da maioria das pessoas como algo tenebroso e ruim, ligado ao medo da morte. Ao querer abordar o tema em um jantar, provavelmente alguém proporia uma troca de assunto. "Todo mundo acha que cuidados paliativos é assinar o atestado de óbito. Mas é o atestado de vida", reflete Bia.
O geriatra Douglas Crispim declara que a morte nunca será agradável, afinal ninguém quer morrer ou quer que alguém querido morra. "Nesta fase de sofrimento, nós, como paliativistas, estamos ali para oferecer segurança e ajudar até o final", diz.
Pâmela Puga, terapeuta ocupacional e paliativista, considera fundamental sensibilizar a sociedade sobre os cuidados antes da morte, atendendo ao que o paciente deseja, almeja e precisa. Para isso, é necessário abordar a morte como um processo natural, assim como o nascimento. "Cabe a nós, profissionais da área da saúde, conversar, explicar e indicar os cuidados paliativos".
Para "assinar o atestado de vida", os cuidados paliativos são oferecidos de forma personalizada, com atenção ativa por 24 horas e acompanhamento no melhor local ao paciente, seja no leito de um hospital, em um quarto de clínica especializada ou no conforto de sua própria casa. Não é sobre morrer, mas como viver da melhor forma até o dia da partida.
Tratar do doente x tratar da doença
No Brasil, hospitais facilmente se transformam em um jogo de tabuleiro: ora o paciente não apresenta mais sintomas e recebe alta (ou avança duas casas em direção a uma espécie de livramento da doença que o mantém preso ali); ora os sinais ressurgem (e ele volta três casas, sendo hospitalizado novamente).
Mas na vida real, leitos hospitalares e Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) são vistos como locais de "tortura" indesejáveis. A internação é associada a máquinas barulhentas apitando o dia todo, enfermeiros entrando a cada meia hora, medicamentos que tiram a autonomia de falar ou caminhar, cateteres que mantém pacientes presos à maca.
A medicina tradicional, também denominada de medicina curativa, é baseada no controle da dor e dos sintomas. O foco está nos problemas físicos e clínicos descritos pelo paciente e identificados em exames. Para evitar a morte, então, médicos especializados naquela doença realizam o atendimento do enfermo.
Há quem seja liberado do hospital, mas precisa continuar com o tratamento em casa. Para isso existe o homecare. A modalidade transfere o atendimento hospitalar para domiciliar; contudo o foco continua sendo o mesmo da medicina tradicional: tratar a doença.
Neste sentido, os cuidados paliativos não deixam de tratar a doença. Médicos estarão disponíveis para amenizar o sofrimento do paciente, como nas outras modalidades. Porém, o que difere o tratamento paliativo da medicina tradicional e do homecare é o olhar para com o paciente.
O tratamento se expande, compreendendo o paciente como um sujeito completo, cuja enfermidade tem implicações não só em seu corpo, mas em sua autoestima, autonomia, interações sociais, valores, crenças e vontade de viver.
Mais amor e menos dor
Em junho de 2019, José da Silva começou a sentir fortes dores no abdômen. O senhor de 72 anos de Chaveslândia (MG) recebeu o diagnóstico de úlcera e câncer de estômago. Após um período em tratamento para controle dos sintomas, foi transferido para o Hospital São Judas Tadeu, unidade paliativa do Hospital de Câncer de Barretos, no interior de SP.
"Na unidade tradicional, tem muita gente e a equipe acaba não tendo tempo para me dar tanta atenção. Aqui, com cuidados paliativos, médicos e outros funcionários me tratam com muita paciência e cuidado", comenta José.
Paciência e atenção são peças fundamentais dos cuidados paliativos. É a partir dessas duas virtudes que a equipe paliativista garante uma melhor qualidade de vida ao paciente e sua família, quer ele esteja em seus últimos dias ou não.
Ser diagnosticado com uma doença crônica, na maioria dos casos degenerativa, costuma gerar o sentimento de travar uma luta sabendo que irá perder. O corpo fica mais debilitado e a disposição não é mais a mesma. Pacientes passam a depender de familiares para serem cuidados, perdendo sua autonomia. Segurança e autoestima dão lugar à depressão e desesperança.
Esses fatores contribuem para uma maior evolução da doença. Como consequência, para além da saúde física, a saúde mental, social e espiritual também adoecem. É um ciclo que gera uma maior dificuldade para controlar os sintomas da enfermidade e maior sofrimento. Diante disso, os cuidados paliativos vêm como um lembrete de que a batalha não está perdida.
"A gente aprende a salvar uma vida com os cuidados paliativos, mesmo que a pessoa venha a falecer no final. Salvar uma vida não é só deixar o coração batendo. É trazer alívio e bem-estar a todos os envolvidos enquanto se vive e aos familiares, mesmo depois que se parte", reforça o paliativista Douglas Crispim.
O paciente e seus familiares contam, portanto, com um time de profissionais capacitados das mais múltiplas áreas, de doutores a psicólogos, que objetivam o alívio e a prevenção do sofrimento ligado ao progresso da doença.
Com isso, há a compreensão da morte ao tornar possível o diálogo sobre ela. Isso permite que o paciente viva seus dias em total plenitude até seu último instante.
"[É importante que] o paciente sinta e saiba que é um ser humano com o qual nos importamos e oferecemos o nosso melhor para que sua vida possa valer a pena até o fim", pondera Ana Claudia Quintana, médica especializada em cuidados paliativos pela Universidade de Oxford.
Leia mais: Como lidar com o luto pela morte de uma pessoa próxima?
Elvira Dorileo viu sua mãe partir em casa, aos 95 anos. A aposentada diz que a assistência por cuidados paliativos permitiu que todos da família, além da mãe, se sentissem serenos nos momentos mais debilitantes.
Ao receber a notícia da metástase no pulmão de sua genitora, Elvira não soube como proceder. Foi neste momento que paliativistas deram todo o suporte a todos os envolvidos. "Sabemos que a partida está chegando e aprendemos a mostrar para a paciente que está tudo bem e que, depois dela partir, também ficará tudo bem", diz.
É diante desse suporte que os cuidados paliativos conseguem estender, em média, a expectativa de vida do paciente em cinco meses ou mais - quando comparado àqueles que apenas recebem tratamentos curativos.
O dado é do projeto Enable, realizado pela Robert Wood Johnson Foundation - considerada a maior fundação americana para pesquisas em saúde. Cientistas envolvidos também apontaram, por meio de testes em pacientes, que a chance de cura do câncer aumenta 15% quando os cuidados paliativos são oferecidos precocemente.
Já em relação à saúde mental, o índice de depressão é menor em pacientes paliativos. Isso se dá, de acordo com os voluntários do estudo, pelo respeito aos seus valores, apoio incondicional aos familiares e menor incidência de intervenções médicas agressivas.
Tom Almeida vivenciou de perto três mortes em sua família. Uma delas foi de seu primo, diagnosticado com câncer, que se tornou peça essencial para o que Tom é hoje: empreendedor e ativista pela causa do "bem morrer".
Afinal, os primos conversavam sobre a morte. "Falávamos sobre legado, o que ele tinha realizado, sobre as conexões, o que ele ainda gostaria de fazer", lembra.
O ato de se permitir falar sobre a morte só se tornou possível com os cuidados paliativos, por ser um tratamento que busca romper o tabu da partida como algo cruel e doloroso. "Isso permite com que as pessoas vivam o luto mais saudáveis, sem pendências. Há saudade, há dor. Mas não há culpa, não há arrependimento", ressalta Tom.
Acesso a cuidados paliativos no Brasil
O centro de inteligência do jornal The Economist lançou um ranking sobre a "qualidade de morte" de 80 países, a partir de dados sobre cuidados paliativos de cada nação. Na lista, o Brasil aparece apenas na 42ª posição.
A colocação desaponta o vice-presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos, Douglas Crispim, mas não o surpreende. "O Brasil tem um péssimo controle da dor, uma baixa disponibilidade de analgésicos e um vasto preconceito com cuidados paliativos junto à falta de conhecimento sobre o tema", frisa.
As terras tupiniquins ficam atrás de países como Jordânia (37ª posição), nação árabe cujos cuidados paliativos não são acobertados pela saúde pública e somente focados em pacientes oncológicos; e Malásia (38ª), país asiático onde há estrutura psicossocial para pacientes paliativos, mas falta estrutura e especialização de médicos.
Vizinhos sul-americanos também estão, em sua maioria, à frente do Brasil na colocação. É o caso do Uruguai (39º), cujo projeto público de cuidados paliativos está em vigor desde 2012, mas tem acesso limitado à população por não conseguir atender a todos os necessitados.
No território brasileiro, a normatização que integra a oferta de cuidados paliativos ao Sistema Único de Saúde (SUS) foi publicada somente em novembro de 2018. O objetivo é o reconhecimento e a organização do fornecimento de apoio psicológico e de medicamentos para aliviar as dores de pacientes com doenças que ameacem a vida e de seus familiares.
A resolução é um marco àqueles que lutam e necessitam desse tipo de serviço no país. Afinal, oficializa o uso dos cuidados paliativos em todos os hospitais públicos do Brasil como uma política de saúde.
Mas, para Crispim, a iniciativa ainda não é sustentável. "Os cuidados paliativos, por teoria, deveriam estar disponíveis em todos os hospitais do SUS. Mas a prática é outra; e a maior parte dos pacientes do SUS não está em hospitais, pois não há leitos suficientes. Precisamos levar os cuidados paliativos para fora do ambiente hospitalar", afirma.
Ana Claudia Quintana, geriatra e referência em cuidados paliativos, ressalta a necessidade de se ter "paciência com a medicina brasileira de modo geral". Ela reitera que o maior problema de acesso aos cuidados paliativos no Brasil é a falta de conhecimento - já que muitos profissionais de saúde relacionam a prática à aceleração da morte, como um tipo de eutanásia.
Não é raro que os cuidados paliativos sejam associados à suspensão de tratamentos e desistência de batalhar pela vida. Este engano leva a decisões equivocadas por parte dos médicos e do público, com intervenções equivocadas e maior sofrimento gerado para o paciente.
"[Cuidado paliativo] não significa interromper a assistência ao paciente e sua família e, sim, tomar uma decisão lúcida e consciente sobre suas reais necessidades. É o caminho para a manutenção da dignidade da vida até o último instante", pontua Ana Claudia.
Especialistas apontam que o acesso aos cuidados paliativos, bem como a informações sobre o tema, ainda engatinha no Brasil. Para mudar essa realidade, são necessárias formações específicas para médicos, reconhecimento da prática como uma especialização na medicina e sensibilização sobre o ato de lidar com a morte.
Leia mais: Crianças com doenças terminais contam a médico o que mais amaram na vida
O mais comum é levar o paciente a fazer inumeráveis linhas de tratamento até seu último suspiro, com a justificativa médica de que se está "lutando" pela vida dele. Contudo, o grande desafio é quebrar a cultura baseada no medo de pensar, debater e refletir sobre a morte como algo inevitável e dolorosa.
Economia em saúde
Em 2001, mais de 29 milhões de pessoas morreram por doenças que poderiam ser tratadas com cuidados paliativos. O dado da Organização Mundial de Saúde (OMS) levanta um alerta sobre a necessidade deste tipo de tratamento, que ainda engatinha no que diz respeito ao conhecimento, acesso e extensão à população.
Apesar de exigir formação por parte dos profissionais para um melhor atendimento ao paciente e seus familiares, especialistas defendem que os cuidados paliativos exigem menos recursos financeiros quando comparados a ambientes hospitalares.
A tecnologia utilizada costuma ser de assistência e as despesas com cuidados paliativos são cerca de 40% menores do que de serviços hospitalares tradicionais.
Cientistas do Johns Hopkins Health Systems, nos Estados Unidos, descobriram que programas de cuidados paliativos podem gerar uma economia de aproximadamente US$ 4 milhões ao ano para setores de internações. O valor atualmente equivale a R$ 17.300.000.
O geriatra e paliativista Douglas Crispim assume que a economia a ser gerada com os cuidados paliativos no Brasil não se restringiria somente a setores privados, mas também à própria saúde pública.
"Hoje ocupamos muitos leitos com pacientes com mortes evitáveis, que podem ser tratadas com cuidados paliativos. Isso não vai parar enquanto entidades de saúde não aplicarem medidas claras de cuidados paliativos", contesta.
Ao final da vida, é comum que pacientes sejam encaminhados a unidades hospitalares para tratamento de alta complexidade, como em UTIs. Contudo, mesmo durante os últimos suspiros, os cuidados paliativos também podem ser fornecidos como um tratamento intensivo, de forma a agregar valor à vida do paciente.
Para Douglas, "muitos pacientes internados hoje não precisariam estar internados se tivessem cuidados paliativos em casa, o que geraria uma maior desocupação de leitos para quem realmente precisa ficar hospitalizado".
No Brasil, são registrados cerca de 650 mil óbitos por ano por doenças crônicas, conforme informações da OMS. Destas mortes, mais de 70% ocorre em hospitais, especialmente em UTIs.
Ao imaginar a mãe sendo tratada com terapia intensiva hospitalar em vez de cuidados paliativos, Elvira Dorileo assente: "Minha mãe estava o tempo todo conosco, conversando junto à família. Isso não seria possível em um hospital, principalmente numa UTI. Lá é tudo muito frio, a pessoa passa seus últimos dias sozinha, isso é muito ruim".
Doenças tratadas por cuidados paliativos
Doença grave, progressiva, sem cura e que ameaça a continuidade da vida. O câncer se encaixa como uma luva no que diz respeito a essas características, sendo uma das enfermidades mais temidas por todas as gerações.
Foi a partir dessa patologia que nasceram os cuidados paliativos, que até os dias atuais são reconhecidos por muitos como sinônimo de tratamento oncológico. Entretanto, as doenças possíveis de acompanhamento paliativo vão muito além do câncer.
Os cuidados paliativos atendem a toda e qualquer enfermidade que, potencialmente, pode levar à morte. Diante disso, são divididos, a priori, em três principais grupos a partir das patologias a serem tratadas:
1 - Fragilidades, demências e grandes sequelados
Contrariando o pensamento da maioria, as doenças que mais exigem cuidados paliativos não estão correlacionadas ao câncer. O maior grupo atendido é composto por pacientes com fragilidades, demências e grandes sequelas, como portadores de Alzheimer, Parkinson e AVC.
Tais enfermidades são evolutivas, sendo que muitos casos levam anos para que, de fato, possam comprometer a vida dos envolvidos. Então, os cuidados paliativos costumam exigir uma terapia mais longa com os pacientes e seus familiares, acompanhando o ritmo da doença.
A maioria dos atendidos neste grupo está debilitada, não conseguindo falar, se movimentar ou já em estado de demência. Por isso, não estão aptos a concederem entrevistas à grande mídia, que acaba usando de pacientes oncológicos para cobrir e abordar o assunto.
Além disso, o câncer também exerce grande apelo visual na audiência. É acobertado pelo estigma da magreza, da queda de cabelo, do grande nível de sofrimento em pouco tempo após o diagnóstico. Portanto, é uma doença que chama a atenção e reforça a errônea associação de cuidados paliativos como uma terapia única a pacientes oncológicos.
2 - Falência de órgãos e doenças cardíacas
Até o dia 17 de fevereiro, cerca de 52 mil brasileiros morreram em decorrência de doenças cardíacas somente no ano de 2020, segundo a Sociedade Brasileira de Cardiologia. Já a quantidade de novos pacientes no Brasil com falência dos rins ultrapassa 122 mil ao ano.
Esses são alguns números que expressam a realidade do segundo grupo que mais necessita de atenção paliativa. Este é formado por cidadãos com falência de órgãos, insuficiência renal, cirrose e doenças cardiológicas, que necessitam de cuidados paliativos para alívio do sofrimento e melhora da qualidade de vida.
Essas patologias costumam ser caracterizadas por declínios graduais da função de órgãos, com altas taxas de mortalidade e internações constantes. Assim, se faz necessária a combinação da medicina tradicional com a paliativa para que seja possível amenizar qualquer dor física, psicológica e psicossocial diante de tratamentos que costumam ser agressivos.
3 - Câncer
Até o final de fevereiro, somente em 2020, foram registrados mais de 625 mil casos de câncer no Brasil, segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA). A expectativa é que haja 309.980 incidências novas para este ano, sendo as principais ocorrências provenientes de câncer de próstata (em homens) e câncer de mama (em mulheres).
Receber o diagnóstico de câncer provoca um impacto indesejado em qualquer indivíduo. O susto vem acompanhado de desespero - muitas vezes nutrido por histórias de conhecidos baseadas em sofrimento e pouco tempo de vida.
Independentemente do estágio em que o câncer foi descoberto, os cuidados paliativos surgem como uma alternativa multidisciplinar (nas dimensões física, emocional, familiar, social e espiritual), desde o diagnóstico do paciente até o momento de sua morte (se ela ocorrer), e se estendendo com o suporte ao luto oferecido a família e amigos.
Médica especializada em cuidados paliativos, Ana Claudia frisa que entre adoecer e falecer, há todo um processo que deve prezar pelo bem da pessoa de maneira sagrada e delicada. "Costumo dizer que, no Brasil, as pessoas 'não morrem de câncer'. Elas morrem de dor, de sofrimento".
Leia mais: O que perguntar ao médico sobre o câncer
O papel da equipe paliativista
Quando uma equipe toma à frente de uma tarefa árdua, é comum ouvir que "o trabalho foi feito por muitas mãos". Nos cuidados paliativos, o tratamento não é somente realizado por essas "muitas mãos", devido à múltipla gama de profissionais envolvidos, mas também com muitas mentes e corações.
Conversas compassivas, conhecimento técnico qualificado, cuidado atento e ativo, acolhimento do paciente e da família e abertura para lidar com a morte como um processo natural são itens-chave para qualquer time paliativista. "Estreitamos uma relação plena de compaixão e respeito com o paciente e seus familiares. Este é o caminho para a manutenção da dignidade da vida até seu último instante", reflete Ana Claudia.
Para que tamanha compaixão, respeito e habilidades sejam colocados em prática da melhor forma, todo cuidado paliativo é composto por uma equipe de profissionais diversificados e capacitados para agir em tempo integral.
A OMS recomenda dois tipos de grupos profissionais para cuidados paliativos. O grupo básico deve ser composto por quatro profissionais, incluindo: um médico especializado na doença do paciente; um psicólogo; um enfermeiro; e um assistente social.
Já o segundo grupo é chamado de estendido. Assim, além de atender aos requisitos do grupo básico, pode incluir fisioterapeutas, dentistas, terapeutas ocupacionais, massagistas, fonoaudiólogos, nutricionistas, farmacêuticos e demais especialidades, desde que habilitados em cuidados paliativos.
O fundamento que deve nortear qualquer equipe paliativista é o de controlar o sofrimento do paciente e de seus familiares em todas as dimensões. Diferentes profissionais atuam em diferentes quesitos, de forma a aplicar o melhor que podem oferecer de suas habilidades técnicas.
- Dimensão física: médicos no geral e demais profissionais de saúde, como fisioterapeutas, dentistas, terapeutas ocupacionais, massagistas, fonoaudiólogos, nutricionistas, farmacêuticos
- Dimensão emocional: psicólogos, psicoterapeutas, psicanalistas, psiquiatras
- Dimensão espiritual: padres, pastores, rabinos, gurus, sacerdotes das diferentes crenças religiosas professadas pelos pacientes
- Dimensão social: psicólogos, assistentes sociais, voluntários
- Dimensão familiar: psicólogos, assistentes sociais
Os adultos que mais necessitam de cuidados paliativos no fim da vida são aqueles que sofrem de doenças cardíacas, seguidos por câncer e doenças pulmonares. Já entre as crianças que estão em seus dias finais, as anomalias congênitas são as principais ocorrências que pedem por paliativistas.
Para tratar os pequenos, por exemplo, terapeutas ocupacionais favorecem brincadeiras como recurso durante todo o tratamento, de forma a explorar a imaginação para evar ao bem-estar.
Por sua vez, fisioterapeutas podem proporcionar o conforto físico e autonomia aos pacientes, principalmente diante de doenças que debilitam os movimentos. Pacientes em fases terminais costumam permanecer muito tempo deitados, o que altera a postura, além da capacidade respiratória e motora.
Fisioterapeuta paliativista, Rejane Jácome ressalta que as atividades médicas não ficam somente restritas à técnica. "Atuamos até o último dia de vida do paciente, seja para alívio do quadro clínico ou até mesmo para confortar o paciente com palavras. Muitos pacientes pedem para que possamos conversar, para ouvirmos suas histórias, suas aventuras, eles se sentem seguros e confortáveis", diz.
O poder das palavras acolhedoras também é parte fundamental do trabalho de psicólogos paliativistas, personagens indispensáveis no tratamento.
Quando seu marido foi diagnosticado com câncer, Bia Marangoni sentiu-se perdida com o pedido do amado: "Ele me disse: 'não quero sobreviver mais um mês de forma sofrida, quero continuar com paz e tranquilidade'. Ele não queria um tratamento invasivo e eu não sabia o que fazer".
Hoje, Bia se sente imensamente grata à psicóloga que acompanhou todo o tratamento paliativo do esposo e de sua família. "Se não tivesse sido pelos cuidados paliativos, eu ficaria perdida, não sabia mais quem eu era sem o Carlos. Descobrimos o quão rico foram nossos dias juntos - mesmo sabendo que que não teria mais volta. Percebemos pequenos detalhes do cotidiano que faziam diferença nas nossas vidas".
A importância da família
Diante da notícia do câncer, para Bia, foi custoso aceitar que seu marido estava partindo. Após cinco décadas juntos, ela se viu diante da ideia de perder Carlos. Muitas vezes, quando uma pessoa adoece, a família costuma adoecer junto.
"Quem é mais próximo ao paciente pode até mesmo entrar na Síndrome de Estresse do Cuidador (burnout do cuidador), que nasce do luto e da dificuldade de enfrentamento", explica o paliativista Douglas Crispim.
Muitas vezes, os familiares mais chegados não querem aceitar a partida de quem amam; ou até aceitam, mas abrem mão da vida pessoal, da autoestima e de outras relações para cuidar do doente. Assim, há situações em que o cuidador acaba por falecer antes mesmo do paciente para quem dedicava sua atenção, devido ao desgaste.
Por isso, o trabalho dos cuidados paliativos não se atém apenas ao paciente, mas a todos aqueles que o cercam. É necessário não só conhecer a família, mas acolher e identificar quem pode ter um enfrentamento mais complicado, com sentimento de impotência e culpa pela doença do outro.
Com os cuidados paliativos, Bia entendeu a morte como um processo que chega a todos, independentemente de quando. Mesmo depois do falecimento do marido, continuou com o acompanhamento paliativo por um ano, em terapia de luto. A transformação foi tamanha que hoje fala abertamente sobre o assunto e sua filha faz trabalho voluntário em unidades hospitalares de cuidado paliativo.
Tom Almeida, que perdeu três parentes em um curto espaço de tempo, diz que tendemos a ter medo da ideia da morte, principalmente daqueles que amamos. "É como entrar no mar. Você vai entrando aos poucos e sofre pela parte do corpo que ainda não está dentro da água gelada. Você sofre imaginando a sensação que terá quando a água atingir suas costas. E quando mergulhamos de vez, o susto é grande, mas tudo fica mais fácil, o corpo acostuma mais rápido. Falar e compreender a morte é igual".
Para ele, a família tem papel essencial no bem-estar dos pacientes paliativos. Mais do que oferecer apoio psicológico, todas as desavenças têm de ser resolvidas. "Sabemos que a pessoa vai partir, que é algo natural e inevitável. Então, é hora de resolver tudo, acertar contas, conversar abertamente", orienta.
Sendo assim, é natural que todos passem a refletir sobre como as relações foram tecidas ao longo da vida e, a partir disso, inicia-se um processo de revisão e de tentativa de possíveis resoluções de pendências que possam existir. É uma grande oportunidade de conexão.
Aliás, conexão é o item que move Dalva e José Luiz. O casal de 65 anos vive cada etapa do tratamento paliativo junto, como se os dois fossem um só. O apoio incondicional de Dalva nutre os sorrisos de José, que luta contra um câncer. Seus votos de casamento já diziam: "na saúde e na doença, até que a morte os separe".
O amor é o principal combustível para que os cuidados paliativos encontrem maneiras de suavizar a dor e trazer à tona a felicidade, dia após dia. É um ensinamento sobre dar valor às coisas simples em vez de focar no sofrimento. E, para vivenciar essa experiência, nada melhor do que ter ao lado as pessoas que mais se ama.
Cuidar mesmo quando não houver esperança
Para a maior parte dos familiares e dos próprios pacientes, aceitar a ideia de ser atendido com cuidados paliativos não é uma tarefa difícil. Isso porque é difícil aceitar que a partida é irreversível, principalmente a quem está em fase terminal.
Coordenadora médica da unidade de cuidados paliativos do Hospital de Amor, Michelle Uchida Miwa lembra que é natural surgirem questionamentos relacionados ao tempo de vida, temores e preocupações no que diz respeito ao presente e ao futuro do paciente e sua família.
Não há como os médicos determinarem o tempo de vida de cada pessoa, pois cada um tem um histórico distinto, uma resistência à doença e certos resultados ao tratamento. Enquanto o paciente respirar, todo o time paliativista e a família precisam estar a postos para que possam trazer o máximo de alívio possível, mesmo diante de enfermidades incuráveis.
Quando questionado sobre seu tratamento paliativo, José Luiz Ianel se emociona. "É difícil até explicar o quanto a gente fica agradecido por poder ter essa oportunidade de estar num lugar tão maravilhoso. Aqui no hospital, a gente convive com pessoas de vários lugares do Brasil e todo mundo com quem a gente conversa tem esse sentimento sobre o hospital: de carinho e cuidado com a gente".
A gratidão não se restringe somente aos pacientes. Ao saber que seu pai estava doente, Tom perguntou a ele se tinha medo de morrer. Nunca havia tido uma conversa sobre isso antes com ninguém, questionando sobre como o outro gostaria de partir e o que desejava fazer antes disso ocorrer.
Falar da morte nutre dois sentimentos em comum: medo e dor. A partir dos cuidados paliativos e da possibilidade de discutir sobre esse tema, o ativista se viu diante de outras sensações que permitiram com que se sentisse grato por eliminar o sentimento de culpa e se tornar mais humano. "Os cuidados paliativos expandem nossas concepções enquanto pessoas sobre a morte, compreendendo-a como algo que nos faz valorizar ainda mais a vida", diz.
A médica Ana Claudia Quintana relembra casos em que pessoas morreram em macas hospitalares, lutando até o último minuto e não querendo aceitar o fato de estarem partindo. "Mas eu digo que assim é 'morrer errado'. Está errado tecnicamente obrigar um paciente e sua família a serem submetidos a qualquer tratamento degradante e fútil, que não muda em praticamente nada a chance de morte".
Ela relata que a generosidade que recebe de pacientes terminais que não sentem dor é algo incrível, muito mais intenso do que aqueles que lutam contra a morte. "Nesta vida, a gente só morre uma vez. Então, até mesmo o dia da morte tem de ser um dia sem sofrimento. Um dia em que se vale a pena viver".