Morfologia de um Pânico insuflado
Transtornos psicológicos por causa da gripe
Paulo Rosenbaum possui graduação em Medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP-1986), mestrado e...
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Rápido, ande. Vamos logo, rápido.
- Calma, é muita coisa pra carregar, está pesado... Javier respira como uma folha.
- Rápido!
- Entrou?
- Sim, saia você agora.
Os dois equilibrados entre três pilhas de caixas altas saem desgovernados da toca apertada e despejam tudo no porta malas aberto do carro ligado.
- Precisamos tomar cuidado, vão avançar nisso aqui.
- Por isso mesmo pegamos as tintas, disfarce entendeu?
A noite terminava. As nuvens terminavam. As ruas desertas como quando tudo começou. O toque de recolher vigorava e eles ali, arriscando suas vidas por máscaras cirúrgicas. Ficaram sem escolha. Talvez tivessem opções. Mas a solução foi esconde-las em uma caverna improvisada. Sorte ter encontrado aquele lugar. Máscaras são objetos raros e valiosos em tempos de pandemia. Os preços e ações de indústrias de insumos anti-contágio dispararam. A onça do ouro valia muito menos que um par de luvas. Chegaram a se envergonhar por tantas máscaras acumuladas, mas chegou uma hora sempre chega -- libertaram-se da solidariedade. Estocar parecia uma garantia extra de proteção e era lucrativo. Acumular não é o objetivo de todos? Qual o pecado?
- As pragas enlouquecem as pessoas, disse Javier, apenas uma semana antes que do toque de recolher.
- Agora só faltam os remédios.
Dirigem mais duas quadras. Quando chegam no segundo esconderijo tiveram a desagradável surpresa. A cova havia sido violada por gente ainda mais ávida e apavorada. Todas as doses cuidadosamente empilhadas durante semanas tinham sido saqueadas. Não sobrou nada além de resíduos: ampolas quebradas, frascos esvaziados, rótulos umedecidos jogados no chão.
Javier ainda se dobrou desesperado em buscas de comprimidos espalhados pelo chão. Esfolava as unhas na terra preta e úmida. Não pode ser contido por Bartolomeu, que assistiu a cena com desprezo.
- Esqueça, tudo isso aqui é uma loucura. Bartolomeu tenta demover seu colega.
Javier ainda estava agachado se esfregando na terra em busca de qualquer coisa parecida com medicamentos e nem ouve o que o amigo diz.
- Caiu a ficha. Bartolomeu fala sozinho.
Javier continua entretido na ridícula escavação.
- Piramos Javier. Você entende que piramos? Bartolomeu já está sacudindo seu ombro.
- Nós e o mundo. Javier se obriga responder tentava encolher a advertência. Desqualificar Bartolomeu diminuiria sua culpa.
- E daí? O que importa é que percebi que isso não faz sentido!
- O que não faz sentido? Javier cede e vai se levantando com um olhar desconfiado, tentando captar a incoerência.
- Nada disso.
- Foi idéia sua!
- Eu sei, mas é ridículo.
- Mas você me convenceu...podemos ser executados.
- Eu sei, eu sei, mas não é assim mesmo que as correntes funcionam? Um imbecil como eu acredita em tudo que se diz sobre qualquer coisa e tendo mais poder vai influenciando e convencendo os outros de que devo retransmitir a
- Para. Para. Dá para parar? Não me arrisquei ser fuzilado por nada! As mãos estão abertas e tensas.
- Retransmitir a paranóia, foi minha culpa, eu é que dei corda à realidade paralela. Bartolomeu ignora Javier, fala somente para tentar se convencer.
- Tudo isso é delírio? Então tudo isso aqui como se pudesse mostrar com as mãos -- tudo que fizeram nas últimas duas semanas é maluquice?
- Acho que sim. Tudo por uma gripe mais forte. Pode ser grave em algumas pessoas, mas sempre foi assim. O risco sempre existe e os epidemiologistas estavam certos até que se uniram ao alarmismo midiático. Virou polícia médica. Qualquer dia um desses vírus mutantes ainda pode surpreender a humanidade, mas não foi dessa vez.
Javier desaba ao solo, cobre a face com as mãos sujas e Bartolomeu se aproxima para consolá-lo, quando o amigo explode em gargalhadas hostis.
- Você está de brincadeira! Só pode estar de brincadeira! Como podem?
- Não estou não. Estendendo a mão para levantar Javier.
Bartolomeu e Javier embarcam de volta para a cidade na caminhonete alugada sem dizer palavra. Bartolomeu espirra.
- Saúde.
- Gracias.