Graduado em Medicina pela Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina (Unifesp-EPM), tem mestrado e...
iO que é quilomicronemia?
A síndrome da quilomicronemia familiar (SQF), ou deficiência da lipoproteína lipase, é uma doença genética rara que afeta o metabolismo de gorduras do corpo e atinge em média uma pessoa em cada 1 milhão 1,2.
Por uma falha no DNA, quem convive com a doença não tem a enzima responsável pela quebra da gordura - a lipase lipoproteica - ou ela funciona de forma deficiente, impactando severamente no metabolismo dos triglicérides, que se acumulam em grande quantidade no sangue1.
Enquanto os níveis normais de triglicérides giram em torno de 150mg/dL até no máximo 200 mg/dL, quem tem a SQF pode chegar a ter valores até 100 vezes maiores1.
Para compreender como a doença ocorre, é preciso entender primeiro que a maior parte da gordura existente na natureza está na forma de triglicérides, e que toda gordura consumida pela alimentação é absorvida no intestino. Em seguida, ela entra nos quilomícrons, lipoproteínas que servem para carregar pelo sangue as gorduras que são ingeridas3.
Em um indivíduo saudável, essas gorduras (triglicérides) transportadas pelos quilomícrons são quebradas e “digeridas” pela enzima lipase lipoproteica, sendo absorvidas rapidamente pelos tecidos do corpo e pelo fígado, sendo usadas posteriormente como forma ou acúmulo de energia, ou para outras funções da célula3. Em quem tem SQF, porém, essa metabolização da gordura não acontece4.
Causas
Hereditária, a quilomicronemia familiar pode acontecer em ambos os sexos, mas só se manifesta quando o pai e a mãe passam o gene mutado para o filho ou filha. Se apenas o pai ou apenas a mãe passarem o gene recessivo para o filho ou filha, a doença não se manifesta.
Ou seja, é preciso que ambos os pais tenham a mutação e passem para os filhos, o que, nesse cenário específico, representa 25% de chance para cada gestação5.
Em regiões em que o casamento consanguíneo é frequente, o índice de problemas genéticos como esse é maior. Em pais que não têm relação alguma de parentesco, a chance de a criança nascer com alguma doença genética é de até 3% por gestação.6 No caso de os pais serem primos, por exemplo, a chance já aumenta para 6%7.
Isso acontece porque, por serem da mesma família, os pais podem carregar a mesma mutação autossômica recessiva, repassando para a criança, que invariavelmente manifestará a doença se tiver recebido os genes de ambos os pais6,7.
Tipos
Há cinco genes envolvidos na síndrome da quilomicronemia familiar (SQF). Essa variação pode afetar de forma mais ou menos intensa o funcionamento e a existência da enzima lipase lipoproteica no organismo e, dependendo do caso, a condição pode se manifestar desde o nascimento, ou surgir na infância, adolescência ou vida adulta ? normalmente aparecendo até a terceira década de vida5.
Sintomas
Sangue viscoso: o principal sintoma da SQF é a taxa de triglicérides extremamente alta. Em bebês que já manifestam a doença após o nascimento, no próprio berçário já é possível identificar que há algo atípico ao colher o sangue para fazer exames de rotina, já que a gordura presente no leite materno, apesar de saudável, também não consegue ser metabolizada de forma correta, acumulando-se no sangue8,9.
O sangue de quem tem a síndrome da quilomicronemia familiar fica com aspecto viscoso de coloração esbranquiçada, como nata ou creme de leite - e essa característica é devida à quantidade de gordura presente ali, os triglicerídeos8.
Xantomas eruptivos: pessoas com quilomicronemia familiar podem manifestar xantomas eruptivos, que são manifestações cutâneas em que vesículas avermelhadas surgem na pele e desaparecem poucos dias depois. As erupções, porém, são cheias de gordura, e é comum surgirem nas costas, nos braços, no abdômen, nas nádegas e na parte posterior das coxas. Esse sintoma costuma aparecer quando os triglicérides estão em quantidade exagerada no sangue10.
Dor abdominal: pacientes com quilomicronemia familiar costumam sentir dores abdominais causadas por uma inflamação na região em decorrência do excesso de gordura. A inflamação principal, porém, acontece no pâncreas, o que muitas vezes leva à pancreatite, a complicação mais grave da doença e que pode levar à morte se não tratada imediatamente1.
Alterações cognitivas: a quilomicronemia familiar também pode provocar alterações cognitivas, como perda de memória e outros sintomas que afetam a qualidade de vida1.
Diagnóstico
Apenas um exame genético poderá confirmar o diagnóstico da SQF. No entanto, observações de altos níveis de triglicérides sanguíneos, sintomas na pele, dores abdominais, sinais de inflamação no pâncreas, fígado gorduroso, além de exames de fundo de olho podem indicar que a quilomicronemia familiar está presente1.
O exame de fundo de olho é geralmente feito por um oftalmologista, que observa o aspecto dos vasos no fundo da retina. O normal, porém, é que os vasos sanguíneos apresentem uma coloração avermelhada, mas na síndrome da quilomicronemia familiar eles aparentam um tom amarelado ou esbranquiçado, justamente pela cor do sangue estar mais clara por causa da quantidade de gordura circulante11.
Fatores de risco
Por ser uma doença genética, não há como prevenir a condição. No entanto, uma dieta inadequada e rica em gorduras piora ainda mais a manifestação e as consequências ruins da doença8.
Buscando ajuda médica
Quem tem quilomicronemia familiar ou suspeita da doença deve receber acompanhamento médico. Nesse caso, o ideal é procurar algumas especialidades específicas, como cardiologia, endocrinologia, gastroenterologia, oftalmologia e dermatologia, para que seja feita a investigação que comprove a doença8.
Depois do diagnóstico, que é só confirmado por testes genéticos, é também indispensável o acompanhamento com nutricionista, que poderá prescrever um plano alimentar com a quantidade máxima de gorduras a serem ingeridas por dia de acordo com a composição corporal da pessoa, além de passar orientações sobre a alimentação que deverá ser seguida1,8.
Tratamento
Atualmente não há tratamento medicamentoso para SQF no Brasil. Aqui, a única forma de tentar manter os triglicérides dentro de um nível controlado para a doença é por meio da dieta com baixo índice de gorduras e alimentos que aumentem a produção de triglicérides, como açúcares e refinados12.
Em casos emergenciais, há uma técnica denominada plasmaférese, que consiste em uma filtragem do plasma sanguíneo da pessoa com quilomicronemia familiar, fazendo com que os triglicérides fiquem retidos e o sangue retorne à circulação livre da gordura. Com isso, os níveis de triglicérides caem drasticamente, e os xantomas eruptivos, por exemplo, desaparecem logo em seguida12.
No entanto, essa é uma tentativa emergencial e não há indicação para ser feita periodicamente, além de não ser coberta pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e contar com poucos locais disponíveis para o procedimento12.
Cuidados
Dieta para quilomicronemia familiar
A dieta de um paciente com quilomicronemia familiar deve ser restrita em gorduras, já que o organismo não consegue metabolizar os triglicérides. Em um indivíduo comum, permite-se o consumo de até 35% de gorduras diariamente por meio da alimentação. Já em quem tem síndrome da quilomicronemia familiar, o número diminui para até 10-15%, sendo que as gorduras priorizadas devem ser os triglicérides de cadeia média (TCM)5.
Essa recomendação se dá porque esse tipo de gordura não precisa dos quilomícrons para ser transportado pelo corpo, mas sim da albumina. Com isso, essa gordura consegue ser metabolizada pelo fígado e não aumenta a taxa de triglicérides do sangue15.
Porém, além de ser difícil de encontrar esse tipo de gordura - que é industrializada, não sendo encontrada na forma pura na natureza - é preciso sempre ficar atento à recomendação do médico e nutricionista, pois é preciso se certificar de que o produto escolhido realmente seja o TCM16.
Pouca gordura
A dieta do paciente com quilomicronemia familiar, portanto, é bastante restrita. Os alimentos devem conter a quantidade mínima de gordura possível, como frango, peixes e carne magra, além de leite desnatado e ausência de outros óleos, como os ácidos graxos de cadeia curta ou longa, que precisam dos quilomícrons para serem transportados pelo organismo - o que aumenta exacerbadamente a taxa de triglicérides no sangue. A gordura de carne vermelha, bacon, manteiga e dos óleos fazem parte desse grupo restrito16.
Além disso, os carboidratos também se transformam em triglicérides no organismo, o que contraindica uma dieta rica nesse grupo alimentar. O paciente com quilomicronemia familiar não pode ingerir açúcar ou alimentos refinados, e bebidas alcoólicas também não devem ser consumidas16.
Um deslize, mesmo que pequeno, já aumenta drasticamente a quantidade de triglicérides no organismo, elevando o risco de pancreatite. Porém, a alimentação correta e restrita não consegue fazer com que a taxa de triglicérides do sangue atinja valores considerados normais, o que torna o tratamento da doença ainda mais difícil16. Em média, os médicos já se contentam com taxas menores que 800mg/dL, pois esses valores já diminuem consideravelmente a chance de ter pancreatite, a complicação mais grave da doença17.
O acompanhamento nutricional é importante para evitar carências vitamínicas, já que as vitaminas A, D, E e K são lipossolúveis, ou seja, que só são solúveis em gordura. Com a baixa ingestão de gorduras, a absorção dessas vitaminas pode ser prejudicada, o que leva à necessidade de suplementação específica individualizada16.
Portanto, o paciente com quilomicronemia familiar deve priorizar o consumo de16:
- Vegetais (legumes e verduras)
- Grãos integrais
- Proteínas magras
- Frutas em quantidade limitada
- Leite e derivados apenas desnatados, sem adição de açúcar.
Prevenção
Por ser uma doença genética, até o momento não há como prevenir a quilomicronemia familiar. Porém, caso o paciente com quilomicronemia familiar tenha intenção de ter filhos, uma boa prática é passar por um aconselhamento genético antes de tomar essa decisão. Com isso, investiga-se se o parceiro também possui essa alteração genética e, se houver, qual a possibilidade de ela ser transmitida aos filhos5.
O aconselhamento genético estende-se aos irmãos e pais do paciente com quilomicronemia familiar. Caso os dois pais tenham a mutação patogênica em um dos genes, a chance de o filho nascer com a doença é de 25%, visto ser autossômica recessiva. Se apenas um dos pais tiver a alteração, não há risco de os filhos nascerem com a condição, apesar de poderem ser portadores da mutação. Com a informação em mãos, o casal portador dos genes alterados poderá tomar sua decisão com esclarecimento5.
Convivendo (Prognóstico)
É importante saber que os pacientes com quilomicronemia familiar não respondem aos tratamentos comuns para colesterol ou triglicérides altos, como estatinas, fibratos, ácidos graxos ômega-3, atividade física e dieta convencional5.
Atualmente, no Brasil, a única forma de controlar a doença é por meio da dieta restrita em gordura prescrita e ajustada individualmente12. Com isso, os riscos de pancreatite são minimizados, fazendo com que a pessoa possa levar uma vida normal, apesar da restrição alimentar severa5.
Os pacientes com quilomicronemia familiar, aliás, costumam ter baixas taxas de colesterol ruim (low density lipoprotein - LDL), já que ele não consegue ser metabolizado, ou seja, sequer é formado na circulação a partir do sua precursora a VLDL que precisa da lipase lipoproteíca10.
Complicações possíveis
A principal complicação da síndrome da quilomicronemia familiar é a pancreatite aguda, uma grave inflamação no pâncreas que pode levar à morte se não tratada a tempo ou adequadamente. Os níveis de triglicérides exageradamente aumentados levam à inflamação do pâncreas, provocando o quadro1,8.
Nesse caso específico, a pancreatite acontece porque os triglicérides em excesso se acumulam nos pequenos vasos do órgão, obstruindo-os e fazendo com que o sangue não consiga circular adequadamente, provocando necrose e destruição de células do pâncreas1.
Além disso, a quilomicronemia familiar pode provocar gordura no fígado, em consequência da infiltração gordurosa. Com o tempo, o quadro pode evoluir para cirrose. A doença também pode causar o aumento do baço, além de diminuir as plaquetas do sangue e provocar anemia8.
Referências
Dr. Raul Dias dos Santos Filho (CRM: 57825), diretor da Unidade Clínica de Lípides do Instituto do Coração (Incor) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP).
Dra. Maria Cristina Izar (CRM: 43024), diretora de promoção e pesquisa da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp).
1 - Falko JM. Familial Chylomicronemia Syndrome: A Clinical Guide For Endocrinologists. Endocr Pract. 2018;24(8):756-763.
2 - Sugandhan S, Khandpur S, Sharma VK. Familial chylomicronemia syndrome. Pediatr Dermatol. 2007;24(3):323?325.
3 - Tso P, Balint JA. Formation and transport of chylomicrons by enterocytes to the lymphatics. Am J Physiol. 1986;250(6 Pt 1):G715?G726.
5 - Burnett JR, Hooper AJ, Hegele RA, et al. Familial Lipoprotein Lipase Deficiency. In: GeneReviews® [Internet]. Seattle (WA): University of Washington, Seattle; 1993?2020.
6 - Kozuki CG, Steiner CE. Consanguinity and Geographic Origin of Patients With Autosomal Recessive Metabolic Disorders Evaluated in a Reference Service in Campinas, Brazil. J inborn errors metab screen. 2015;3:e140015.
9 - Feoli-Fonseca JC, Lévy E, Godard M, Lambert M. Familial lipoprotein lipase deficiency in infancy: clinical, biochemical, and molecular study. J Pediatr. 1998;133(3):417?423.
10 - Sugandhan S, Khandpur S, Sharma VK. Familial chylomicronemia syndrome. Pediatr Dermatol. 2007;24(3):323?325.
13 - European Medicines Agency. European Medicines Agency decision P/0120/2014. EMA/195548/2014. Disponível em: https://www.ema.europa.eu/en/documents/pip-decision/p/0120/2014-ema-decision-7-may-2014-agreement-paediatric-investigation-plan-granting-deferral-granting_en.pdf
14 - Chaudhry R, Viljoen A, Wierzbicki AS. Pharmacological treatment options for severe hypertriglyceridemia and familial chylomicronemia syndrome. Expert Rev Clin Pharmacol. 2018;11(6):589-598.
17 - Gelrud A, Williams KR, Hsieh A, Gwosdow AR, Gilstrap A, Brown A. The burden of familial chylomicronemia syndrome from the patients' perspective. Expert Rev Cardiovasc Ther. 2017;15(11):879?887.