Possui graduação em Medicina pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (1991), residência e especial...
iApesar da origem muito anterior, quando o vírus da imunodeficiência humana (HIV) foi identificado no começo dos anos 80, ele já era uma epidemia mundial. Nesta época, o diagnóstico de HIV positivo era uma sentença de morte e, ainda estudante de medicina, lembro-me bem quando dia após dia assumia um plantão com 10 ou 15 jovens infectados para, 12 horas depois, entregá-lo com, quando muito, um sobrevivente. Simplesmente não havia o que fazer e assim, de 1981 até hoje, o HIV espalhou-se por todo o globo e devastou continentes, acumulando 36 milhões de infectados e 24 milhões de mortos, garantindo para si um lugar como uma das grandes pragas da humanidade.
Mas a humanidade não ficou passiva. Após um início conturbado, em tempo recorde, identificamos o vírus e mapeamos seu ciclo de vida, o que possibilitou a criação de tratamentos que o transformaram de infecção letal em doença crônica. Ainda assim, pesados todos os sucessos, o máximo que podemos dizer é que a briga está empatada, pois o número de infectados segue subindo, gerando um peso insustentável nas estruturas econômica, social e higiênica de vários países, perpetuando miséria, fome, crime, violência e sub-desenvolvimento.
Como já demonstrado com outras doenças, uma arma vital para quebrar este impasse seria uma vacina eficaz - e não se economizaram esforços para produzi-la. Há anos, a vacina contra o HIV é prioridade para entidades como a Organização Mundial de Saúde (OMS) ou a Fundação Gates, mas os repetidos fracassos apenas provam quão formidável é nosso adversário... Até agora. Recentemente, uma publicação na revista Nature revelou uma nova estratégia com potencial para gerar a vacina capaz de impedir a disseminação do HIV.
O objetivo deste artigo é explicar de forma muito simplificada e resumida por que ainda não há vacina eficaz contra o HIV e por que esta descoberta pode possibilitá-la.
Por que é difícil obter uma vacina eficaz, parte 1: A metáfora do restaurante.
Em seu famoso livro "A Arte da Guerra", Sun Tzu escreve: "se você conhece a si mesmo e a teu inimigo, você não precisa temer o resultado de 100 batalhas". Isto vale também na luta contra doenças infecciosas, na qual conhecer o inimigo significa: entender como micróbios penetram nosso organismo, evadem nossas defesas e subvertem nossa fisiologia em proveito próprio. Sun Tzu também ressalta a importância de conhecer o terreno de seu campo de batalha e, neste caso, nossas batalhas ocorrem não no mundo macroscópico com que o leitor está acostumado, mas no terreno da biologia, que é significativamente diferente.
No mundo macroscópico, a maior parte dos eventos ocorre de modo simples, visível, direto e previsível, por exemplo: você vai diariamente a um restaurante, pede seu prato favorito, a cozinha o prepara, o garçom te serve, você come, paga e sai.
No mundo da biologia, a realidade nem sempre é diretamente visível e pode flutuar de modo parcialmente imprevisível. Portanto, nesta realidade, a situação acima poderia transcorrer do seguinte modo: você vai diariamente a um restaurante, mas hoje ele está no outro lado da rua e a porta da frente encolheu pela metade. Você entra por ela, mas sai no banheiro, encontra sua mesa, mas o menu está em sânscrito, pede seu prato favorito, mas a cozinha prepara outro que o garçom serve ao freguês ao lado. Sem comer, você paga o dobro do que pagou ontem, demora cinco horas para achar a saída, e sai sabendo que amanhã tudo pode estar diferente.
Pois é, o primeiro passo para ser biólogo é entender que no mundo da biologia apenas de vez em quando um mais um é igual a dois, e uma das razões para isto é que por menor que seja um organismo, seu DNA é uma estrutura dinâmica e interativa com muitas possibilidades a serem exercidas em resposta a estímulos internos e externos. É bem diferente de um físico que acha ruim quando a 25ª casa decimal do resultado de seu experimento não bate exatamente com sua previsão. Como isto interfere na vacina do HIV? Diretamente, por causa de sua estratégia de sobrevivência e transmissão.
Por que é difícil obter uma vacina eficaz, parte 2: a biologia do HIV
Para se disseminar, os agentes infecciosos precisam continuamente infectar novos hospedeiros - mas cada hospedeiro é como um cofre cuja porta é protegida por uma fechadura. Para penetrar este cofre, cada micróbio tem sua estratégia. Alguns, como a bactéria salmonela, dispensam sutilezas e explodem a porta. Outros, como o herpes, possuem a chave. O HIV não perde um segundo pensando na chave certa - ele vai para a fechadura com dez bilhões delas, de modo que é praticamente certo que ao menos uma funcionará e isto basta. Mas, para podermos entender exatamente do que estamos falando, vamos dar nome aos bois.
Aquilo que chamamos de fechadura são na verdade 3 proteínas na superfície das células brancas do sangue, chamadas de CD4, CCR5 e CXCR4. O que chamamos de chave é uma proteína do HIV chamada gp120, e o que chamamos de infecção é o processo pelo qual o HIV usa sua gp120 como gancho para se prender às CD4, CCR5 e CXCR4 da célula, conseguindo com isso o apoio necessário para penetrar a célula e nela se instalar.
Sabendo disto, parece óbvio que a solução para impedir a infecção é neutralizar gp120, correto? Tão correto que este foi exatamente o intento das primeiras vacinas anti-HIV, injetar o indivíduo com fragmentos purificados de gp120 no intuito de gerar anticorpos anti-gp120 que neutralizem sua capacidade de ligação às proteínas celulares. Apenas para quem não sabe, anticorpos são proteínas de defesa produzidas por nosso sistema imune para grudar em invasores ou substâncias estranhas ao organismo com a finalidade de: se vivos, matá-los. Se ativos, neutralizá-los. Se circulantes, removê-los. E vacinas fazem isto? Sim! Sim! Sim!.. Essa é sua especialidade, praticamente sua razão de existir, portanto, teoria alinhada a um plano, vamos à luta.
Os teste da vacina anti-gp120 foram realizados e... Exatamente como na metáfora do restaurante, mesmo tudo fazendo sentido, falhou. O nível de neutralização dos anticorpos anti-gp120 não era suficiente para evitar a infecção e, não bastasse isso, assim que um anticorpo se mostrava eficaz, o HIV usava sua enorme capacidade de mutação para trocar aquela versão de gp120 por outra e escapar. Esta provou ser a maior dificuldade para obter uma vacina: o alvo, gp120, simplesmente não pára quieto e sofre mudanças mais rápido do que nossa capacidade de persegui-lo com anticorpos. Infelizmente, um cenário similar se repetiu com outras proteínas do HIV administradas isolada ou conjuntamente.
Esgotada esta possibilidade de ataque frontal, os cientistas saíram em busca de novas estratégias e um bom local para começar foi analisar como pessoas naturalmente imunes à infecção pelo HIV conseguem derrotá-lo. Do estudo deste grupo aprendemos duas coisas: a primeira é que sem CCR5 e/ou CXCR4 na superfície da célula a infecção pelo HIV não progride, e a segunda foi que a eficácia neutralizadora dos anticorpos anti-gp120 identificados em alguns destes indivíduos era exponencialmente superior à media encontrada na população infectada e/ou vacinada. Com isso, surgiu uma nova estratégia que consistia na criação de uma vacina que gerasse não um anticorpo qualquer, mas um destes superanticorpos.
Essa ideia falhou não porque o superanticorpo anti-gp120 era ruim, mas primeiro porque a vacina para gerar este superanticorpo é muito mais complexa. Segundo, a mínima concentração sanguínea protetora de superanticorpo vacinal não era atingida, pois supera a capacidade média de produção de anticorpos do organismo. Terceiro, apesar do superanticorpo proteger muito bem contra alguns vírus, ele não cobre todos, deixando uma lacuna de proteção.
Finalmente, aplica-se novamente a metáfora do restaurante: de modo paradoxal, em alguns casos, o tratamento com o superanticorpo parece ter facilitado a infecção pelo HIV. Estratégias similares baseadas na tentativa de impedir a ligação do HIV com CCR5 e CXCR4 também falharam em atingir níveis satisfatórios de proteção. Ou seja, testamos essencialmente tudo o que nossos estudos sugeriam como eficaz para bloqueio da infecção pelo HIV e, ao final, terminamos de mãos vazias. É em momentos assim, de máxima frustração, quando as alternativas parecem estar se esgotando e o desespero bate, que surgem as ideias loucas que eventualmente salvam o dia.
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Então, um grupo de cientistas olhou para o que havíamos feito e pensou: se tudo o que testamos funciona parcialmente, por que não fazer uma vacina que combine todas estas ações? Uma completa loucura, e por quê? Vejam bem, se fazer uma vacina apenas para gerar um superanticorpo já era difícil, imaginem a dificuldade de criar uma vacina para produzir um superanticorpo, sendo que no meio dele você insere artificialmente outra proteína para bloquear CCR5, sendo que esta, para funcionar, precisa ser modificada por ainda uma terceira proteína que não existe na célula e por isso precisa ser co-administrada na forma de uma segunda vacina combinada e tudo isso precisa funcionar de modo simultâneo e coordenado. Isto simplesmente não existe, é impossível, uma receita para desastre. A coisa mais próxima comparável seria despachar toneladas de materiais e pessoas para a órbita da Terra para lá construir uma estação permanente... Ué? Mas nós fizemos isto, não? Exatamente, ousar coisas loucas às vezes paga bem e da mesma forma, os pesquisadores deste grupo foram progressivamente identificando e desarmando os problemas e ajustando a vacina de modo que no teste em animais ela gerou proteção eficaz, segura e duradoura contra o HIV.
Novamente invocando a metáfora do restaurante, é verdade que o fato de funcionar em animais não significa que funcionará em humanos, mas pode. Tudo o que podemos fazer é testar e verificar. Ainda assim, é impossível negar que mais do que nunca, há uma forte esperança de que em breve despacharemos o HIV no mesmo trajeto no qual mandamos a varíola, a pólio, a caxumba, a catapora, o HPV, o sarampo, entre outros. Com poucas exceções, só pegará HIV quem recusar vacinação.