Evelyn Vinocur é doutora em Pediatria, graduada em 1978 pela Universidade Federal Fluminense (UFF), especialista em Pedi...
iVou contar a experiência de uma de minhas pacientes, obviamente tendo todo o cuidado em alterar alguns dados para proteger a sua identidade. Coisa que a gente sempre acha que não acontece com a gente, acontece! Ou pelo menos aconteceu com a minha paciente. Ela procurou-me para terapia em virtude de estar brigando muito com o namorado, devido ao excesso de serviço. Porém, ele se irritava com isso e aí era briga certa.
Marina se questionava se gostava mesmo do namorado e disse que iria terminar o namoro, coisa que era fácil pra ela e que ela já tinha tido sei lá quantos namorados. Marina era do tipo líder, uma jovem executiva bem sucedida, workaholic, dinâmica e bem relacionada com a sua equipe. No auge dos seus 26 anos, ela já tinha vivido toda sorte de experiências. Sempre no fio da navalha , como diziam seus amigos mais íntimos, preocupados com o seu jeito expansivo e indomável de ser. Amada ou odiada. Era assim que ela era. Temperamento ousado, destemido, por vezes agressivo. Pavio-curto. Dócil. Uma mistura de facetas que a tornavam carismática e sedutora.
Precisamente, no sábado de aleluia, há 3 anos, Marina bateu com o carro quando ia passar uns dias em Búzios, para relaxar, a convite de amigos. Ultrapassou um caminhão sem prestar atenção num carro que vinha em sentido oposto. Sobreviveu, mas acabou pagando um preço caro pela sua impulsividade: múltiplas fraturas na face e no quadril. Depois de mais de um ano entre plásticas reconstrutivas e incontáveis sessões de fisioterapia e de psicoterapia, ela tentaria se reestruturar, dar a volta por cima e correr atrás do prejuízo, por ter ficado inativa por quase três anos. O curioso é que em uma das sessões de psicoterapia, Marina se lembrou que na infância ela já tinha sido atropelada três vezes. Bobagenzinhas , disse ela, culpando os três motoristas. Mais curioso ainda, era o fato dela nunca ter se lembrado disso. A partir daí, ela se lembraria de seus apelidos de furacão, à mil por hora , elétrica , por conta da sua energia desmensurada e rebeldia incontida na infância e na escola. - Mas eu era ótima aluna, só tinha notas altas! , dizia ela. Na ocasião, eu já havia dado um questionário para ser preenchido por ela e por seus pais. Depois de vários encontros, ficaria claro para mim e para seus pais, que Marina era portadora de TDAH do tipo combinado.
Nossa, foi um choque, ela sumiu da terapia e disse que não era maluca e que médico tinha mania de botar doença pra cima das pessoas, - eu, hein,... disse ela. E saiu da sala gritando TDAH nada, não me faltava mais nada, ninguém merece...
Programei um trabalho de Psicoeducação para os pais e o irmão de Marina. Entre idas e vindas, afinal conseguimos nos entender e concordar que o TDAH é, de fato, um transtorno que pode cursar com graves conseqüências na vida do portador e que precisava ser urgentemente tratado. Mesmo assim, Marina só voltaria a me procurar muito tempo depois. Mas a família dela continuou freqüentando o meu consultório quinzenalmente. E foi muito positivo, pois eles passaram a ser o seu ego auxiliar, alertando-a dos pensamentos inadequados, marcando seus momentos de impulsividade, ajudando-a na resolução de problemas, etc.
A vida de Marina não foi das mais fáceis depois do acidente. Não seria mais a executiva de antes, é claro, até porque ao voltar, já tinha uma outra gerente em seu lugar. E isso foi um golpe profundo para ela, que nunca soube lidar com a frustração. Aquele fato ela sentiria como uma ferida narcísica que derrubaria a sua auto-estima e com ela toda a sua pose. Ela não conseguiu continuar no emprego, pois se sentiu humilhada e pediu demissão. Para uma mulher jovem e cheia de energia, ter que ficar em casa, sem emprego e sem poder se locomover com a facilidade de antes (pelas fraturas) foi um tormento. Passou a dormir muito pouco, a fumar em demasia e a beber socialmente. Ganhou 6 quilos de peso, o suficiente para que ela entrasse num estado alterado de humor, chamado disfórico, onde ela alterava num mesmo dia, estados emocionais totalmente desregulados, de raiva, culpa, tristeza, medo, etc., configurando-se em verdadeiras tempestades afetivas. Foi então levada a mim pelos pais, que se comprometeram em tratar da filha naquele momento, de qualquer jeito. Marina já avançou bastante, e hoje ela concorda que é portadora do TDAH e aceita o tratamento indicado. Aprendeu a cuidar de si, do seu corpo, faz academia, está namorando e está trabalhando. Está feliz e com planos para o futuro.
Conclusão:
Através da anamnese detalhada com a paciente e com seus pais, pude concluir muitos dados para o meu diagnóstico: foi criança hiperativa, de alto índice intelectivo que permitiu que ela tivesse sido sempre boa aluna, impulsiva, muito falante, impaciente, imediatista, perfeccionista, voraz, ambiciosa, muito sincera, falando coisas que magoavam a pessoas e ela nem se tocava disso, subia e pulava em tudo, já era conhecida do posto médico da escola e do bairro, inconstante socialmente, não fazia questão de amigas, pegava muitas coisas ao mesmo tempo para fazer e virava o dia pra terminar, sofreu três acidentes leves de carro, etc. Só que, a partir dali, as tarefas foram se complicando, exigindo dela muito esforço e atenção, eram complexas, extensas, exigindo muita calma e equilíbrio, predicados que Marina não tinha. Humor desestabiliza mais, sofre acidente grave com fraturas, comprometimento sério e limitante em todas as áreas da vida da paciente.
Podemos ver, através de um só caso clínico, quanto estrago o TDAH pode trazer para a vida de uma pessoa jovem, com tantas coisas a dar e a perder! E cujo final foi feliz porque seus pais continuaram ali comigo, lutando junto, cuidando da filha, aprendendo sobre as nuances do transtorno e podendo cuidar dela no momento certo e da forma certa, com o remédio e terapia cognitiva.
Evelyn Vinocur é psicoterapeuta cognitivo comportamental. Atua na área de saúde mental de adulto e é especializada em saúde mental da infância e adolescência.
Para saber mais, acesse: www.evelynvinocur.com.br