Evelyn Vinocur é doutora em Pediatria, graduada em 1978 pela Universidade Federal Fluminense (UFF), especialista em Pedi...
iVou contar uma parte da consulta de um dos meus pacientes. Ele me achou pelo site e já veio com o diagnóstico pronto: TDAH. E veio para se tratar. De fato, ele respondeu muito freqüentemente para quase todas as perguntas do ASRS-18.
Eu vou tentar reproduzir um trecho de uma de nossas consultas: A minha mãe morreu de doença bipolar. Eu sempre fui conhecido como polvolino ou polvilho, sabe por quê? Por causa daquele biscoito..., sabe aquele biscoito Globo, que a gente come na praia, que neguinho vende nas ruas quando o trânsito está parado ou engarrafado? Ele esfarela todo! E eu era assim, por onde eu passava, eu deixava um monte de marcas, um monte de farelos, por onde eu ia, todo mundo sabia... eu era estabanado desde pequeno, tinha um troço dentro de mim que não parava quieto, eu andava pela casa e toda hora eu derrubava uns bibelôs da mamãe e ela ficava transtornada! Não parecia a minha doce e triste mãe, que vivia jogada naquela maldita cama pelo menos uns 300 dias do ano... ainda bem que eu era rápido, quando eu derrubava os enfeites da mamãe eu saía correndo, ia pra casa da vizinha, tia Lany, e me escondia no banheiro da empregada!
Do banheiro da tia Lany eu ouvia os grunhidos da mamãe, os berros dela, e logo depois os barulhos das coisas que ela mesma quebrava dentro de casa, por causa da raiva que entrava dentro dela... os anos foram passando e chegou o dia que meu pai largou a casa.
Pegou uma sacola e uma mala e botou tudo o que ele conseguiu. Beijou a minha testa, mandou eu tomar conta da minha mãe e me pediu desculpas, disse que não dá mais pra aturar a doida da sua mãe, ela está insana, palavras dele. Sequei as lágrimas que escorriam pelo meu rosto, estavam quentes, de tanta raiva que eu senti dele.
Corri pra procurar o Aurélio, queria ver direito o que era insana. Fiquei com ódio do meu pai.
Naquele dia eu quebrei tudo dentro de casa, gritei e xinguei até cair no chão, sem forças. Acordei apavorado com sangue no meu braço, da maldita jarra que eu joguei contra a parede e que me cortou.
Minha cabeça parecia um avião. Um avião em pane, claro. Custei a ficar normal. Quando vi o estrago que eu tinha feito em casa, fiquei sem força nas pernas, minha vista escureceu e eu achei que ia desmaiar. Fui me arrastando pelo chão até a porta da sala. Eu tinha que fugir.
Quando a minha mãe visse tudo aquilo ela ia acabar comigo. Quando ela soubesse que meu pai não voltaria mais, ela poderia me matar com aquele cinto desgraçado. Ela ia me matar. Naquele dia eu não fui pra tia Lany. Tinha que ir pra mais longe. Passei aquela noite sentado no banco da rodoviária, até o dia amanhecer. Da rodoviária até a minha casa andando a pé levava uma hora mais ou menos, mas eu estava tão agitado, tão apressado, que levei uns vinte minutos até chegar em casa.
Deu um bloqueio em mim quando eu cheguei na esquina de casa. Fiquei uns trinta minutos parado olhando para o meu prédio. Parecia tudo calmo. Calmo?
Ah, essa palavra nunca existiu no meu vocabulário... pra encurtar o meu sofrimento, a minha raiva, o meu medo e a minha culpa, eu acabei sabendo que a minha mãe tinha tentado se matar e que tinha sido levada para um hospital.
Nos seis meses seguintes eu fui obrigado a ir morar com a minha tia. Era outra insana, nervosa, esquisita e muito chata! Só falava gritando, berrava o tempo todo. Quando ela saía pra trabalhar, parecia um paraíso... Meu Deus, quem inventou escova de dente e escola? Eu sempre odiei escola! A escola era o meu martírio, o meu holocausto, o lugar onde eu paguei todos os meus pecados, todas as minhas culpas! A única coisa que prestava era a Estelinha, lábios gordinhos e róseos... hum, era só o que prestava e era a única coisa que fazia as minhas pernas entrarem naquela maldita sala de aula... nossa, como eu sofri!
Gozado, o dia parecia dividido. Um lado ensolarado, colorido. O outro lado, nuvens negras, sombrias, abutres. Minha cabeça parecia um pião desgovernado. Nada encaixava com nada. De repente, um barulho da porta que se abriu e eu me lembro como se fosse hoje, um homem grande, todo de branco, entrou pela porta com a minha mãe pelo braço. Pensei que ia morrer. De medo, sei lá. Mas foi esquisito porque nem eu corri pra abraçá-la e nem ela correu pra me abraçar.
Ficamos dois túmulos. Ela deu um sorriso amarelo pra mim e muito depois estendeu os braços. Parecia que tinha uns dez anos que eu não via a mamãe. Ela estava velha e acabada. Olhava para o nada, tremia de leve, parecia abobalhada. Nunca mais voltei naquele lugar.
Dois anos depois, a tia Lany foi me procurar na casa da minha tia. Não falou nada e só me abraçou e não parava de chorar. Mamãe morreu, tia? Ela morreu, não é?Vi a minha mãe no velório. Quase esmurrei o velho do meu pai, aquele assassino! Ainda teve o despautério de chorar! Quis lavar a honra da minha mãe, quis muito acabar com o velho, mas alguma coisa em mim me segurou.
Dei um beijo na testa da mamãe e saí dali correndo. Estava com falta de ar. E hoje, Dra., eu estou aqui porque eu acho que eu venho tendo umas coisas parecidas com as coisas que a mamãe tinha... .
Evelyn Vinocur é psicoterapeuta cognitivo comportamental. Atua na área de saúde mental de adulto e é especializada em saúde mental da infância e adolescência.
Para saber mais, acesse: www.evelynvinocur.com.br