Formada na Escola Paulista de Medicina - UNIFESP, Residência médica em Gastroenterologia no Hospital Heliópolis 1987. Me...
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iO que é Cirrose biliar primária?
A cirrose biliar primária (CBP) é uma doença hepática crônica colestática, ou seja, ocorre um acúmulo de bile no fígado. Sua causa não está totalmente esclarecida, mas acredita-se que seja uma doença autoimune, em que o sistema imunológico do indivíduo produz anticorpos que atacam e causam destruição dos ductos biliares intra-hepáticos. A bile acumulada no fígado causa um processo inflamatório com dano aos canais biliares e aos hepatócitos, que são lentamente destruídos, com formação de fibrose e posterior cirrose.
A existência de um marcador sorológico específico (o anticorpo antimitocôndria) e a associação frequente com outras doenças autoimunes sugerem a etiologia autoimune da doença. Mas a causa da CBP pode também estar relacionada com exposição a fatores ambientais (infecções bacterianas, tabagismo, certos compostos tóxicos, etc.) em pessoas com predisposição genética à doença.
Sintomas
Como a maioria das doenças crônicas do fígado, a CBP costuma ser assintomática e o diagnóstico muitas vezes só é feito tardiamente, no estágio de cirrose. Quando o diagnóstico é feito em fase inicial, podem permanecer sem sintomas por vários anos.
Os sintomas de cirrose mais comuns são a fadiga, presente em 78% dos pacientes, e o prurido (coceira) no corpo, presente em 48 a 60% dos casos, podendo estar associados a aumento do fígado (hepatomegalia) ou das enzimas hepáticas.
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O prurido é o sintoma mais específico da cirrose biliar primária e geralmente o primeiro a aparecer (cerca de 50% dos casos), muitas vezes levando a pessoa a procurar um dermatologista, e quando observadas alterações nos exames laboratoriais sugere doença no fígado, sendo feita investigação e diagnóstico. A causa do prurido não é bem conhecida, acredita-se que seja decorrente da impregnação de bilirrubina na pele, mas também pode se correlacionar com alterações de receptores opioides na pele.
Diagnóstico
Cerca de 40 a 60% dos casos de cirrose biliar primária são diagnosticados pelo achado de enzimas colestáticas elevadas (fosfatase alcalina e gama-glutamil transferase) em exames de rotina, deve-se suspeitar da doença nos indivíduos com indícios de colestase crônica, ou seja, prurido, fadiga ou icterícia, principalmente se for do sexo feminino, sendo que a presença de anticorpos antimitocôndria (AMA), que é reagente em 95% dos casos, confirma o diagnóstico. Deve-se sempre questionar sobre sintomas de outras doenças, como a presença de olhos secos, boca seca (xerostomia), artrite e fenômeno de Rauynaud, pois mais de 85% dos pacientes apresenta alguma outra doença autoimune associada, como a tireoidite autoimune, esclerodermia, artrite reumatoide, síndrome de Sjogren e hepatite autoimune.
No diagnóstico, a albumina e o tempo de protrombina costumam estar normais, indicando preservação da função hepática, mas podem se alterar durante o curso da doença. Ocorre aumento importante de gamaglobulinas ou imunoglobulinas, como em outras doenças autoimunes. As aminotransferases podem ter aumento leve, de até 4 vezes o limite superior da normalidade, mas predomina o aumento das fosfatase alcalina e GGT, este fato é importante para a diferenciação com os quadros de hepatite autoimune. A concentração lipídica é elevada, com aumento do colesterol, o paciente pode apresentar xantelasma e xantomas, que são depósitos de gordura na pele. Podem ocorrer manifestações de deficiência de absorção de vitaminas lipossolúveis (A, D, E e K), como cegueira noturna, alteração da protrombina com deficiência de coagulação maior tendência a sangramento, alterações neurológicas, doença óssea como a osteopenia, ou mais raramente osteoporose e osteomalácia, relacionadas com deficiência de vitamina D, ou pela inibição da formação de osteoblastos pela bilirrubina
A diminuição da secreção biliar que ocorre nestes pacientes pode causar esteatorreia, que é eliminação de gordura nas fezes, sendo importante a diferenciação com as pancreatopatias.
As manifestações de cirrose são incomuns no diagnóstico, mas podem ocorrer encefalopatia, ascite e hemorragia digestiva alta durante a evolução da doença. A progressão da fibrose hepática até a cirrose e suas complicações ocorre ao longo de várias décadas.
Nos casos duvidosos o diagnóstico deve ser confirmado com biópsia hepática, também usada para estadiamento da doença e avaliar diagnósticos alternativos ou associados (hepatite autoimune, esteato-hepatite não alcoólica, etc.).
A classificação histológica divide as lesões da CBP em quatro estádios, dependendo da intensidade do processo inflamatório e da fibrose, sendo estágio I com inflamação mais restrita e IV cirrose.
Recomenda-se que o diagnóstico seja firmado com a presença de dois dos três seguintes critérios:
- Evidência bioquímica de colestase, principalmente pelo aumento da FA
- Presença de AMA positivo
- Evidência histológica de colangite não supurativa e destruição de ductos biliares interlobulares.
Fatores de risco
A cirrose biliar primária é uma doença incomum, com prevalência de 19-150 casos a cada 1 milhão de habitantes nos EUA, no Brasil a prevalência não é conhecida, mas representa menos de 5% das indicações de transplante hepático no país.
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Pessoas com história familiar tem uma chance 1000 vezes maior de ter a doença em comparação com a população normal. Observa-se um componente hereditário na cirrose biliar primária. Anticorpos antimitocôndria são encontrados em até 10% dos parentes de primeiro grau de portadores de cirrose biliar primária e estima-se que 4% a 6% destes portadores possuem algum parente de primeiro grau acometido pela doença. A doença acomete principalmente pessoas do sexo feminino (95% dos casos), principalmente entre 40 e 60 anos.
Tratamento
O tratamento é inicialmente sintomático, devem-se procurar fatores que podem causar ou piorar a fadiga como a presença de anemia e hipotireoidismo, tratar as manifestações associadas à cirrose biliar primária (fadiga, prurido, síndrome seca, dislipidemia, doença óssea, má-absorção e deficiências vitamínicas) e também tratar a doença hepática relacionada à CBP.
A colestiramina, um agente quelante de sais biliares, é a primeira escolha para tratamento do prurido nestes pacientes, a dose usual é de 4 gramas três vezes ao dia. Outra opção para tratamento do prurido é o uso de anti-histamínicos, que ainda tem o benefício de sedação, pois o sono pode estar prejudicado pelo prurido. Outras medicações que já foram usadas incluem antagonistas da serotonina, antidepressivos e fenobarbital.
Não existem muitas opções de medicamentos que modifiquem a evolução da doença. Apesar de, provavelmente, ser uma doença autoimune, a imunossupressão com o uso de corticosteroides e de azatioprina não mostrou melhora na evolução da doença e tendem a apresentar complicações, como piora na osteoporose. A penicilamina e ciclosporina foram abandonadas devido aos efeitos colaterais.
A única medicação que modifica a evolução da doença é o ácido ursodesoxicólico (UDC), que é um variante de sais biliares que tem a característica de ser mais hidrofílico (mais solúvel em água) que a maioria dos sais biliares normalmente presentes na bile, ele passa a constituir cerca de 40% do pool de ácidos biliares na bile, que se torna menos detergente e tóxica. Além disso, parece mudar aspectos de imunidade nos hepatócitos e canais biliares, estimulando a secreção hepatobiliar, o que reduz o acúmulo de bile no fígado. Utilizado na dose de 12-15 mg/Kg divididas em duas vezes ao dia ou em dose única à noite. Os benefícios da medicação incluem melhora laboratorial e, em alguns casos, do prurido, a progressão da doença provavelmente seja mais lenta, embora seja duvidosa uma melhora significativa em relação à mortalidade.
A medicação deve ser iniciada em todos pacientes com alterações hepáticas bioquímicas, sendo que o benefício é maior quando a medicação é introduzida nas fases iniciais da doença. É preciso intervalo de pelo menos duas horas entre a administração dos quelantes de sais biliares, como a colestiramina, e UDC, para não prejudicar a absorção deste último, em geral leva-se de quatro a cinco dias para melhora significativa do prurido, e nem sempre o prurido melhora com o uso de UDC.
Outra medicação com benefício em relação a alterações bioquímicas é a colchicina, utilizada em dose de 0,6 mg duas vezes ao dia, leva à melhora dos níveis de bilirrubinas, FA e aminotransferases, podendo ter efeito sinérgico com o UDC. Mas geralmente tenta-se o uso isolado do UDC.
O metotrexate demonstrou benefícios em dose de 15 mg por semana, com diminuição de níveis de FA, bilirrubinas, colesterol e aminotransferases, mas não tem nenhuma evidência de melhorar o curso da doença. A velocidade de resposta é mais lenta do que com o UDC, mas pode ser eventualmente utilizada em conjunto com a mesma medicação.
Nos casos com síndrome seca usam-se lágrimas artificiais, e nos com xerostomia usa-se saliva artificial.
Pode ser necessária a reposição de vitaminas A, D, E e K, que é individualizada a cada caso, o uso de carbonato de cálcio pode ajudar a prevenir o aparecimento de osteomalácia, embora o benefício para osteoporose seja indefinido.
O transplante hepático é a melhor opção para portadores de CBP em estágio avançado. A probabilidade de sobreviver ao primeiro ano é de 90 a 95% e de 70 a 80% em 5 anos, em grandes centros. Há uma taxa de recidiva de cerca de 10% da CBP no fígado transplantado, mas nesses a doença costuma seguir um curso mais benigno. As indicações mais aceitas para transplante são: bilirrubina total acima de 4 mg/dL, falência da função hepática, prurido ou fadiga graves, ascite refratária ao tratamento, encefalopatia hepática, sangramento por varizes de esôfago, não controlado por medicação e terapia endoscópica.
Medicamentos
Os medicamentos mais usados para o tratamento de cirrose biliar primária são:
- Brometo de Pinavério 100mg
- Brometo de Pinavério 50mg
- Clocef
Somente um médico pode dizer qual o medicamento mais indicado para o seu caso, bem como a dosagem correta e a duração do tratamento. Siga sempre à risca as orientações do seu médico e NUNCA se automedique. Não interrompa o uso do medicamento sem consultar um médico antes e, se tomá-lo mais de uma vez ou em quantidades muito maiores do que a prescrita, siga as instruções na bula.
Convivendo (Prognóstico)
A progressão ocorre na maioria dos casos, mas a velocidade de progressão é muito variável nos diferentes pacientes. Os títulos ou a positividades dos AMA não influenciam o prognóstico, por outro lado os valores da bilirrubina muito aumentados são marcadores de mau prognóstico. A bilirrubina pode permanecer normal por vários anos e depois permanecer pouco aumentada por mais alguns, porém, em geral, quando os níveis de bilirrubina sobem muito e os pacientes apresentam icterícia clínica, ocorrerá evolução para quadro de cirrose e falência hepática. Essa mudança (bilirrubina total acima de 4-6 mg/dL) torna-se um bom parâmetro para encaminhar o paciente ao centro de transplante hepático. Outros fatores que influenciam o prognóstico incluem níveis diminuídos de albumina sérica, edema generalizado e hemorragia.
É duvidoso se a cirrose biliar primária tem risco aumentado de evolução para carcinoma hepatocelular em comparação com outras causas de cirrose.
O diagnóstico precoce e a utilização de terapia apropriada retardam a progressão da fibrose hepática, aumentando a sobrevida. Nas últimas décadas, observou-se tendência a uma melhor evolução da doença, provavelmente pelo diagnóstico mais precoce e a disponibilidade de tratamentos.
Referências
Cibele Ferrarini Nascimento Cruz, gastroenterologista e hepatologista, especialista do Portal Minha Vida (CRM/SP - 47359)