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"O que aconteceu comigo durou dos 8 aos 12 anos de idade. Eu lembro que eu dormia com os meus pais e ele dormia no outro cômodo, mas o banheiro ficava depois desse quarto. Eu ficava segurando o xixi de noite porque eu sabia que logo ao lado ficava o meu agressor."
Esse relato ilustra apenas um dos mais de 17 mil casos anuais de violência sexual contra menores de idade, segundo informações de 2018 do Disque 100. Dados do Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes, do Ministério da Saúde, mostram que 72% dos registros de violência sexual aconteceu contra pessoas de até 17 anos.
Os números ainda revelam que, em 68% dos casos, a violência acontecem em casa, e mais de 70% dos registros de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes são praticados por pais, mães, padrastos ou outros conhecidos das vítimas.
O "monstro" embaixo da cama
O senso comum traça o perfil do pedófilo como um homem adulto, desconhecido, louco e moralmente desqualificado. Porém, na prática, se observa o contrário.
O sociólogo e autor do livro "A pedofilia e suas narrativas", Herbert Rodrigues, afirma que o abusador infantil é geralmente uma pessoa respeitável, cumpridora da lei, que pode escapar da punição exatamente por essa razão.
Herbert explica que a ideia de monstruosidade do abusador se deve justamente por agir contra os mais vulneráveis. Por isso, há a necessidade de proteger as crianças, uma vez que o abusador pode estar no quarto ao lado.
Joana*, 8 anos
O trecho citado no começo da reportagem é um depoimento de Joana*, que sofreu uma série de abusos por 4 anos. Todos os dias. O agressor era o namorado de sua irmã que, desde o dia em que entrou no quarto da menina e a viu nua, se trocando, começou a criar diversas situações para que ficassem sozinhos.
"A partir daí ele começou a me assediar. A princípio era só assédio. Mas depois ele já começou a fazer o que, na cabeça dele, deviam ser carinhos, até de fato colocar o dedo e me machucar. Depois de 2 anos que estavam ocorrendo os abusos, a minha irmã pegou essa situação, porém ficou do lado dele. Eu lembro que nesse dia ele me pegou por trás, abaixou minha calcinha e colocou o pênis para fora, e então ela entrou", conta.
Joana* relata que, depois dessa situação, o agressor "ganhou mais força" e começou a fazê-la se sentir culpada. "Na verdade ele colocava na minha cabeça que eu estava traindo a minha irmã. Então, eu não tinha ideia de que aquilo era um abuso, eu me sentia culpada por estar recebendo atenção do namorado dela", detalha.
"Talvez se eu não tivesse sofrido esse abuso, eu teria uma outra vida"
Hoje, depois de muitos anos, Joana* afirma que esse trauma refletiu totalmente na sua vida adulta, não só em suas relações sexuais, mas também na sua personalidade.
"Eu era uma pessoa muito doce e, depois disso, fui ficando mais melancólica. Talvez se eu não tivesse sofrido esse abuso, eu teria uma outra vida. Eu não teria sofrido tanto, entrado em depressão e nem teria a tendência de procurar outros relacionamentos abusivos", conta. Ela relata que já quase passou por síndrome do pânico ao lembrar dos episódios, além de atribuir a eles alguns problemas de autoestima e o repúdio ao próprio corpo.
De acordo com a neuropsicóloga e especialista em psicologia do desenvolvimento, Deborah Moss, realmente é comum que, futuramente, a criança que sofreu algum tipo de abuso sexual tenha dificuldades de se relacionar com o próprio corpo. Isso acontece pois o enxergam como algo impuro, impróprio e que desperta agressividade do outro.
No entanto, a psicóloga e autora do livro "Fios de ouro no abismo: uma cartografia do abuso sexual infantil", Karina Acosta, enfatiza que cada criança que viveu algum tipo de violência sexual terá suas próprias consequências. "É importante que cada pessoa possa dizer sobre si mesma, e não ser silenciada por dizeres psicológicos e psiquiátricos. Esses podem obscurecer mais uma vez a experiência vivida a partir de compreensões abstratas", afirma.
O espaço de escuta e acolhimento de cada experiência é essencial, tanto por profissionais especializados como também pela sociedade. Segundo Karina, é importante romper o silenciamento e escapar à etiqueta social de não "meter a colher" em assuntos da vida privada.
Marília*, 15 anos
"Eu tinha 15 anos e ele começou a dar em cima de mim, dizia que queria tirar minha virgindade. Botava a mão na minha perna e falava que tinha muito tesão em mim."
Esse é um trecho do depoimento de Marília*, que sofreu diversos assédios por parte de seu cunhado, dono do bar onde ela trabalhava. Ela conta que, diferentemente da maioria dos casos, resolveu revelar para sua irmã sobre o que estava passando, porém foi desacreditada.
Outra contradição observada nos casos de abuso sexual infantil é que, mesmo com a grande recorrência de casos dentro de casa, a família ainda mantém um grande silenciamento.
"Tudo que ameaça o sentimento de união fica silenciado. Na medida em que a dinâmica familiar finge a inexistência destas violências, ela facilita a sua multiplicação e continuidade. O silenciamento faz parte de uma dinâmica de omissões que dificultam possíveis denúncias", explica a psicóloga Karina.
"Parece que hoje eu sou vulnerável para tudo"
Mesmo que atualmente se sinta mais forte e encorajada a falar sobre isso, Marília* ainda se sente muito abalada com tudo que viveu.
"Parece que hoje eu sou vulnerável para tudo. Eu tenho medo de dizer não. Na rua, eu me sinto perseguida. Hoje até roupa muito curta não consigo usar, com medo", comenta ela sobre os impactos do que sofreu há 7 anos.
A psicóloga aponta que, nos casos que a criança ou adolescente relata algum tipo de abuso, é essencial o acolhimento de forma segura e confortável, sem jamais desmenti-la.
"A criança que consegue romper o pacto de silêncio e narrar esta violência, mas é desmentida, pode novamente manter silenciado este sofrimento, continuando emaranhada em tramas de culpa", afirma.
Luzia*, 9 anos
"Eu tinha 9 anos e ele começou a apertar minha bunda. Eu já fiquei extremamente mal, não queria mais ficar ali. Depois começou a passar a mão em mim, nos meus peitos. Eu tinha muito medo de mostrar que estava assustada, fugir e ele correr atrás de mim para me pegar."
O homem que abusou de Luzia*, aos 9 anos, era vizinho de sua avó. Antes disso, ela costumava considerá-lo como um avô. A menina só conseguiu contar para os seus pais 4 meses depois do ocorrido, pois, apesar do sentimento de culpa, tinha receio que o homem fizesse o mesmo com a própria neta.
"Foram 11 anos com ele sendo vizinho da minha avó. Foram 11 anos que eu ia pra lá e ele sempre estava lá na frente, sentado numa cadeira. Sempre me fitando de uma maneira absurda e eu sempre me sentia cada vez pior", conta.
Felizmente, os pais de Luzia sempre a informaram sobre os limites em relação ao seu corpo. Por isso, a garota pôde identificar imediatamente o que estava acontecendo. "Eu consegui escapar graças à informação", comenta ela.
"Eu consegui escapar graças à informação"
Segundo a psicóloga Karina, a educação é imprescindível para ajudar na prevenção dos casos de violência, pois pode auxiliar no conhecimento do próprio corpo e da sexualidade. Assim, uma criança pode reconhecer os abusos que ela esteja vivendo e denunciar a alguém de confiança.
Itamar Gonçalves, gerente de Advocacy da ONG de proteção à infância e à adolescência Childhood Brasil, detalha em quatro passos como os adultos poderiam trabalhar a educação sexual com as crianças, ao longo das fases da vida.
- Nos primeiros anos de vida, é importante trabalhar as diferenças dos corpos e ensinar a nomear quando se sente em risco. Segundo ele, muitas crianças chegam na justiça sem saber nomear as partes do corpo
- Depois dos 5 anos, é interessante também explicar sobre o que é público e o que é privado, e ensinar quais partes do corpo devem ser privadas. Quando a criança que sabe que é dona do seu corpo, já é possível trabalhar mais a fundo sobre segurança pessoal
- A partir dos 8 anos, já é possível desenvolver as regras de conduta dentro da própria família.
Hoje, as crianças estão aprendendo sobre sexualidade com a internet. Quando o adulto encontrar uma criança acessando pornografia, ele deve explicar que esse conteúdo não é apropriado para sua faixa etária. É importante também entender quem apresentou o pornô a ela.
- Com os adolescentes, é importante ter conversas francas sobre reprodução humana. Além disso, é possível abordar a violência de gênero que aparecem nos filmes e o modelo de erotismo que é ensinado com o pornô. Nesses conteúdos, corpos sendo representados como sempre sarados e bonitos, o que não corresponde à realidade.
Questão de gênero
Para instruir crianças e adolescentes a respeito de abuso, violência e limites do seu próprio corpo, é impossível ignorar a questão de gênero.
Segundo dados do Ministério da Saúde, uma a cada três pessoas vítimas de violência sexual é uma menina de 12 a 17 anos.
Para Itamar, isso se deve à forma como a sexualidade é introduzida na vida de meninos e meninas. Enquanto eles buscam uma educação sexual na pornografia e encontram uma relação onde a mulher é colocada como um objeto, elas são reprimidas em sua sexualidade e educadas somente para satisfazer os meninos.
Neste contexto, repensar como a masculinidade e a feminilidade são formadas e performadas em nossa sociedade é essencial.
"Transformar os papéis de gênero que reforçam diferenças de poder entre homens e mulheres e entre adultos e crianças podem ajudar a produzir outros modos de se relacionar e de experimentar a sexualidade de modo menos desigual e violento", acrescenta Karina.
Maria Júlia*, 4 anos
"Eu tinha uns 4 ou 5 anos e ele também era uma criança, então isso prejudicou porque eu não sabia se era brincadeira. Mas eu lembro de falar 'não' e mesmo assim se repetia. Basicamente ele mexia nas minhas partes íntimas. Ele chegou já a enfiar o dedo em mim. Por isso, eu tinha muito medo dos meninos."
Maria Júlia* conta que sofreu abusos por parte de seu primo de primeiro grau que, mesmo sendo criança na época, é quatro anos mais velho que ela. Por isso, ela não sabia identificar se aquela "brincadeira" era certa ou errada e nunca contou a ninguém.
Ainda que não quisesse aquilo, a menina relata que aconteceu repetidamente e, em uma das vezes, foram flagrados por sua mãe. A ocasião só rendeu uma bronca: "para que isso é feio".
"Isso foi antes de eu entrar na escola. Quando eu entrei no meu primeiro ano, eu lembro que a professora conversava muito com a minha mãe, porque eu tinha medo dos meninos. Eu não tinha nenhum amigo menino, não brincava e não queria fazer dupla com eles", acrescenta.
"Ele também era uma criança, eu não sabia se era uma brincadeira"
Itamar Gonçalves explica que casos como esse podem ser reflexo do "ciclo da violência". Uma criança pode reproduzir um comportamento de sexualizar excessivamente as relações após ter passado por algum tipo de abuso.
Nesse caso, a criança mostra um conhecimento repentino que não condiz a sua faixa etária. "Essas crianças possuem uma forma de demonstrar afeto através de provocações eróticas inapropriadas, e podem desenvolver brincadeiras sexuais com amigos, que não teria como saber se não tivessem vivenciado ou assistido algo semelhante", explica.
No entanto, a frequente associação da vítima como um potencial agressor pode ser mais um dos estigmas causadores de sofrimento, de acordo com a psicóloga Karina Acosta. Segundo ela, isso pode omitir a problemática social por trás disso.
"A instalação e multiplicação destas violências sexuais é compreendida, numa perspectiva crítica, como um processo social e político, relacionado às relações de poder que se estabelecem em nossa sociedade, principalmente de homens sobre as mulheres, mas também dos adultos sobre as crianças", afirma.
Abuso sexual infantil como uma questão pública
O abuso sexual infantil é um sintoma de um mal-estar maior, que atinge a sociedade como um todo, e não algo que deva ser tratado apenas no âmbito individual, de acordo com a psicóloga.
Itamar Gonçalves concorda, e acredita que essa questão deve ser vista como do Estado.
"Se as criança e adolescentes têm seus direitos fundamentais garantidos por leis, nós também temos deveres com relação às crianças, assim como o próprio Estado. É necessário pensar em políticas de proteção e prevenção e considerar que 70% das vítimas são meninas. Isso significa que temos que discutir o que é gênero, discutir o que é machismo e ver que isso não é de um setor, é uma questão de Estado", finaliza.
*Os nomes inseridos nesta reportagem são fictícios, para preservar a integridade das vítimas entrevistadas