Médico ginecologista e obstetra pela Santa Casa de Misericórdia de Vitória, com especialização em Medicina Fetal pela Fa...
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Rodrigo Bryan da Silva, de 35 anos, sempre quis ser pai. Quando conheceu sua esposa, Ellen Carine Martins da Silva, de 27 anos, esse desejo aumentou, principalmente depois de descobrir que a amada partilhava do mesmo sonho. Após seis meses de tentativas, o teste positivo veio: Rodrigo estava grávido de sua primeira filha.
Essa não é uma história assim tão incomum e nem uma obra do avanço da medicina. Rodrigo é um homem trans e Ellen, uma mulher trans. A concepção aconteceu de forma natural, ou seja, através da relação sexual entre o casal.
“Eu costumo dizer para os pacientes que, para gerar um filho, é preciso unir um útero, um óvulo e um espermatozóide", comenta Emmanuel Nasser, médico ginecologista no Ambulatório de Atenção Integral às Pessoas Transgêneras e Travestis da UBS Santa Cecília, em São Paulo.
Ele explica que em um casal trans centrado, ou seja, constituído por duas pessoas transgêneras que não fizeram a cirurgia de redesignação sexual — uma mulher trans que produz espermatozóides e um homem trans que possui o útero e os ovários —, a concepção pode ocorrer naturalmente, sem a necessidade de métodos de reprodução assistida. É o caso de Ellen e Rodrigo.
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“Durante seis meses, nós tentamos de tudo: acompanhamos os dias férteis do Rodrigo com ajuda de aplicativo, dia da ovulação e tentávamos. A menstruação dele atrasava por alguns dias, mas depois vinha de novo. Foram meses bem doloridos”, relata Ellen, em entrevista ao Minha Vida. Foi então que eles decidiram consultar um médico.
Porém, a gravidez foi confirmada antes mesmo de o casal realizar a bateria de exames solicitada pelo profissional de saúde. Após notar alguns sinais suspeitos de gravidez, como menstruação atrasada, constante vontade de fazer xixi e dor nas costas, Rodrigo decidiu fazer um teste de farmácia. O resultado foi positivo.
“Fizemos mais três testes depois desse. Todos deram positivo. Depois, fizemos também um exame de sangue, que confirmou a gestação. Mas a ficha não caía. Foram seis meses vivendo na loucura, dormindo e acordando pensando nisso”, relembra Ellen. “A ficha só caiu quando a barriga começou a crescer”, acrescenta Rodrigo.
Gestação trans: quais são as possibilidades?
Ellen sentia vontade de ser mãe desde os seus 17 anos de idade, mas achava que seria impossível por ser uma mulher trans. Porém, a verdade é que existem diversas possibilidades para uma pessoa transgênera gerar um filho biológico.
Como vimos, um casal formado por duas pessoas trans pode gerar um bebê de forma natural, mas há outros métodos possíveis para diferentes tipos de casais. “Se o casal for formado por duas identidades transmasculinas que possuem útero, elas vão precisar de reprodução assistida, assim como acontece com um casal com duas pessoas transfemininas, ou seja, que não possuem útero”, explica o médico Emmanuel Nasser.
A reprodução assistida pode ser feita de diferentes formas, principalmente com a utilização de um óvulo ou espermatozóide doado, ambos disponíveis em bancos de fertilização. A gestação de substituição, popularmente conhecida como “barriga de aluguel”, também é uma alternativa, desde que seja feita por parentes de até quarto grau sem interesse comercial, como é permitido atualmente pela legislação brasileira.
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É preciso interromper a terapia hormonal para engravidar?
É comum que pessoas transgêneras façam terapia hormonal para ganhar características físicas do gênero com o qual elas se identificam. Esse tratamento é feito com esteróides sexuais, como sais de testosterona e estrógeno, através de administração transdérmica, oral ou intramuscular, conforme explica Magnus Dias da Silva, endocrinologista da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM).
“Em geral, a terapia ajuda na redistribuição de gordura e aumento das mamas nas mulheres trans que usam estrógeno, e no aumento da massa muscular, da gravidade da voz e de pelos faciais e corporais em homens trans que administram testosterona”, exemplifica o médico.
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Porém, a utilização desses hormônios pode impactar os órgãos reprodutivos. “O uso de estrogênio vai promover algumas mudanças no testículo, como redução de tamanho, diminuindo a quantidade de espermatozóide produzido”, explica Emmanuel Nasser.
“O mesmo acontece com identidades transmasculinas que utilizam testosterona: ela altera a comunicação do cérebro com o ovário e faz com que ela pare de ovular e, consequentemente, menstruar”, complementa o especialista.
Por isso, quando um casal trans deseja uma gravidez planejada, é recomendável a interrupção da hormonização para que a produção de gametas seja otimizada, segundo Magnus Dias da Silva. Além disso, também é interessante analisar a contagem de espermatozoides de uma pessoa trans feminina e a ovulação de uma pessoa trans masculina.
Desafios enfrentados ao interromper a hormonização
Interromper a terapia hormonal pode ser bastante desafiador para as pessoas trans, já que características relacionadas ao gênero de nascimento podem voltar a ser mais visíveis. Rodrigo já havia cessado, por vontade própria, a hormonização aproximadamente nove meses antes das tentativas para engravidar, enquanto Ellen parou quando decidiram ter um filho.
“Para mim, foi um alívio, porque eu nunca gostei dos hormônios, a não ser pelas características físicas femininas que eu ganhei. Mas sei que, para outras trans, pode ser terrível por conta do crescimento de pelos no rosto e mudanças na voz. Isso aconteceu comigo e essa parte foi ruim, mas enfrentei para realizar esse sonho que eu sempre tive”, afirma Ellen.
Além disso, o endocrinologista Magnus Dias da Silva ressalta que a gravidez pode, de diversas formas, recuperar mudanças corporais que conduzem a pessoa trans de volta ao corpo do gênero de nascimento.
“Para alguns parturientes, isso pode ser muito difícil e, ainda, aumentar o risco de manifestações disfóricas por distanciamento das expressões e vivências de gênero autodesignado na vida adulta”, comenta o profissional. “Por isso, mesmo no pré-natal, essas pessoas devem ser cuidadas por uma equipe multiprofissional, com enfoque na promoção de saúde inclusiva e no rastreamento de depressão perinatal, segurança alimentar e nutricional”, completa.
Transfobia durante a gestação
Mas os desafios não param por aí. Em uma sociedade que, apesar de estar em constante transformação, ainda é historicamente conservadora, casos de transfobia e discriminação são comuns durante a gestação. Rodrigo e Ellen criaram um perfil no TikTok e um canal no YouTube para compartilharem suas experiências com a gestação e, ao mesmo tempo que receberam o apoio de seguidores, também tiveram que enfrentar comentários preconceituosos.
“Recebemos muitos ataques. Fizemos um ensaio na gestação e pegaram algumas fotos nossas para disseminar ódio, até gerou um processo. Mas também recebemos bastantes mensagens de amor e, hoje, temos um grupo de pessoas que nos acompanham que sempre nos defende”, relata o casal.
E os desafios não foram enfrentados apenas nas redes sociais. Durante a ultrassonografia feita em uma clínica particular, o nome social de Rodrigo não foi respeitado. Porém, o pai ressalta que, com exceção desse episódio, o acompanhamento médico pré-natal realizado no SUS foi positivo.
“Nos surpreendemos, porque por mais que alguns médicos não soubessem direito como se comportar, eles se esforçaram bastante e foram bem humanos. Me senti muito acolhido”, conta Rodrigo.
Para o médico Emmanuel Nasser, o SUS está bem estruturado tecnologicamente para atender pessoas trans e homens grávidos. Porém, ainda falta preparo na forma de como tratar esses pacientes.
“Eu escuto muitos colegas médicos falando que não possuem formação específica para atender pessoas trans, como se elas fossem de outro mundo. Não é preciso um curso especial para lidar com pessoas que em nada são diferentes de nós, pessoas cisgêneros”, declara o especialista.
O acesso aos sistemas de saúde também é um limitador. “Essas pessoas sofrem uma série de violências ao longo da vida que, ao chegarem nos serviços de saúde, elas já esperam que vão sofrer um processo de violência”, diz o ginecologista.
Para o endocrinologista Magnus Dias da Silva, uma solução para essa situação seria a busca, quando possível, de um centro especializado. “Dessa forma, é possível minimizar eventuais agravos que o parturiente pode sofrer”, opina.
Gravidez trans: uma gestação como qualquer outra
É importante ressaltar que a gestação em uma pessoa trans masculina não traz riscos adicionais à saúde, nem para o gestante, nem para o bebê. “Os riscos que essa pessoa vai ter durante a gravidez são os mesmos de qualquer outra pessoa gestante. Não há nenhuma particularidade que transforma essa gestação em alto risco só porque ela está acontecendo em uma pessoa transgênera”, afirma Emmanuel Nasser.
Para Rodrigo, a gravidez foi um período tranquilo. “Não tive enjoos e nem nenhum grande sintoma que, geralmente, uma pessoa gestante tem”, conta. Hoje, Isabella, fruto da relação dele com Ellen, já tem um ano de idade e muita saúde, enquanto a família acumula 1,2 milhão de seguidores no TikTok e 150 mil seguidores no Instagram (no perfil @fofuxostrans).
Para outras pessoas trans que desejam ter filhos, o casal aconselha: “Nunca desistam dos seus sonhos por conta do que o outro vai pensar, porque se nós dependêssemos da opinião alheia, não teríamos conhecido o amor verdadeiro que é a nossa filha”, diz Ellen. “Se você quer, você vai ser pai, independentemente do que os outros vão pensar”, finaliza Rodrigo.